domingo, 24 de fevereiro de 2008

Lute pelos seus direitos! Mas nunca processe a "Folha", tá?!

O jornal Folha de São Paulo causou espécie com o seu editorial de primeira página do dia 19 intitulado “Intimidação e má-fé”, no qual repudia ações judiciais promovidas em todo o Brasil por seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus que teriam se ofendido com reportagem da jornalista Elvira Lobato sobre atividades da organização. O jornal aproveita para denunciar a possibilidade de cerceamento da liberdade de expressão e reafirma seu compromisso com o direito dos cidadãos à informação.

Difícil não receber tal iniciativa com alguma desconfiança.

Se os cidadãos têm o sagrado direito à informação, têm-no também de buscar socorro no Judiciário quando achar que convém. Como bem disse Wilson Bolognesi, no “Painel do Leitor” de 20-02-2008, “se o sistema permite as ações, a Folha que se defenda com as regras da lei”. Há, porém, situações em que as pessoas podem abusar do direito de demandar. E, com efeito, já há alguns fiéis da Universal que vêm sendo condenados por litigância de má-fé nesse episódio. Isso deveria ser um motivo a mais para o jornal despreocupar-se das ações que lhe vêm sendo apresentadas em todo o país, haja vista o reconhecimento, por parte do “sistema”, da impertinência de algumas delas.

Não se pode também valer-se da liberdade de expressão como um escudo. Diga-se, aliás, que sempre que aparece alguém tentando propor algum tipo de regra ao setor de comunicações, usando para isso os notórios exemplos de abuso da mídia, sempre surge um outro que diz bastar aos que se sintam ofendidos ou injustiçados que procurem reparação judicial nos moldes em que reza a Constituição. Perfeito! Como disse um velho conhecido meu (conhecidíssimo, aliás!), que também teve a honra de ver sua mensagem publicada no “Painel do Leitor”, “o jornal deve estar preparado para as reações que suas reportagens suscitam”. Ou como disse de forma bem mais didática o presidente Lula, em fala reproduzida na mesma edição de 20 de fevereiro, “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. É isso mesmo: é esse o Estado de Direito de que tanto gostamos! A liberdade de imprensa pressupõe responsabilidade; logo, ela não é um fim em si mesmo, antes podendo provocar respostas dos mais diversos matizes e nas mais variadas instâncias.

O jornal - e parece que de certo modo alguns juízes também - vê no “milagre da multiplicação de ações” de fiéis em todos os rincões do Brasil uma tentativa de impor dificuldades à defesa, obrigando a jornalista responsável pelas matérias a deslocar-se para os mais diversos pontos do país para prestar esclarecimentos e coisas do gênero. Ora, mas a Folha de há muito que não é "de São Paulo", mas de todo o Brasil! O jornal, aliás, não raro se mostra bastante orgulhoso da influência que exerce em todo o país. Se amanhã o governador do Amazonas, por exemplo, der uma entrevista em que cite a Folha para confirmar ou negar algo, o jornal soberbamente reproduzirá suas palavras. Mas quando leitores do interior do Acre, valendo-se de prerrogativas que a lei lhes permite, recorrem à Justiça contra a mesma Folha é porque estão sendo instados por seus pastores ou porque estão participando de um ardil orquestrado? É simples, Folha de São Paulo: limite a sua circulação à cidade onde fica a Alameda Barão de Limeira, e certamente as petições em nível nacional tenderão a rarear!

O editorial fala em intimidação. Mas não seria o caso de perguntar se ele próprio, o editorial, não tem a tentativa de intimidar, não os juízes, figuras independentes por definição, mas possíveis futuros litigantes dentre a gente comum? É bom lembrar que houve alguns exageros na imprensa sobre a questão da febre amarela, por exemplo. Houve quem morresse por reações à vacinação; houve quem corresse risco de morte por dupla vacinação; houve quem se expusesse a riscos em regiões endêmicas por não conseguir vacinas em certos locais, por culpa da aplicação desnecessária em pessoas alarmadas pela mídia. Algumas organizações já manifestaram a intenção de acionar judicialmente órgãos de imprensa e alguns jornalistas pela conduta irresponsável no episódio. Será que a Folha está se antecipando ao fato e, desse modo, pretendendo “intimidar” os que vierem a processá-la por este ou qualquer outro motivo?

Disso tudo se depreende que a tal imprensa burguesa não serve nem para ser liberal. Senão vejamos: uma jornalista séria e competente pesquisa, investiga e produz uma boa matéria; um jornal supostamente sério a publica, expondo-se às reações que sua iniciativa pode provocar; pessoas que se sentem ofendidas buscam reparação na Justiça, dispondo-se também a responder por seus atos; juízes em todos os grotões do país vêm decidindo ou tomando as medidas cabíveis. Em suma, o sistema funciona perfeitamente de acordo com o que se chama Estado de Direito. Tudo muito simples: não merecia, jamais, um pomposo editorial de primeira página! A não ser que a intenção tenha sido realmente outra...

Eleições 2010. Já?

Pesquisa CNT/Sensus publicada na última semana mostra que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva atingiu o segundo mais alto índice de popularidade desde o início de sua gestão. Não é de se estranhar, pois a semana também trouxe bons dados referentes ao emprego, à venda de automóveis e de outros bens de consumo duráveis e até em relação à dívida externa (pela primeira vez na história, o Brasil, segundo o Banco Central, pode ter se tornado credor externo).

A pesquisa também fez sondagens em relação à sucessão presidencial de 2010. O presidente Lula, em informação pouco divulgada, lidera a pesquisa nas respostas espontâneas, bem à frente do segundo colocado. Na estimulada, a liderança em todos os cenários é do governador de São Paulo, José Serra. A Constituição não permite o terceiro mandato consecutivo para presidente, por isso Lula não consta das opções apresentadas aos pesquisados na consulta estimulada. Os nomes do partido do presidente não aparecem bem em nenhum dos resultados, o que já fez alguns cientistas políticos suspeitarem que o PT deva pressionar o atual presidente a propor mudanças na Carta Magna para tentar mais um mandato consecutivo.

O exercício de futurologia não é para qualquer um, ainda mais no campo da política. Mas é muito cedo para afirmar que o PT, partido que desde a redemocratização do Brasil protagoniza a maioria das disputas importantes em todos os níveis no país, não tenha nenhum nome capaz de representá-lo para a sucessão do presidente Lula, sobretudo se ele prosseguir com os bons índices de aprovação que ora ostenta.

Façamos uma viagem no tempo: muito antes das primeiras eleições diretas após a redemocratização do Brasil, todos sabiam que Lula, Brizola e Covas dariam o que falar na disputa, mas poucos imaginavam que um certo Fernando Collor teria alguma chance naquele quadro. O êxito de Fernando Henrique Cardoso em 1994 não foi exatamente surpreendente, mas a possibilidade de vitória no primeiro turno, como efetivamente se deu, não era tranqüilamente aventada por especialistas muito tempo antes do início da corrida. O furacão Roseana Sarney também foi uma surpresa em 2002, até ter sua candidatura implodida pela atuação firme da Polícia Federal sobre as atividades de seu marido, atuação esta, aliás, que foi uma raridade no órgão durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Em 2005, no auge da crise do mensalão, era impensável a hipótese da reeleição do presidente Lula um ano depois. Muitos especialistas não acreditavam nas possibilidades eleitorais do ex-governador Geraldo Alckmin, mas ele conseguiu levar a pendenga de 2006 para o segundo turno contra o presidente Lula, um mito verdadeiro, como reconheceu o próprio ex-governador, em recente entrevista ao canal Record News. Por essas e muitas outras é que se deveria pensar duas vezes antes de se fazer afirmações tão peremptórias em relação a uma eleição que somente ocorrerá daqui a dois anos.

Há a possibilidade de o PT fazer o sucessor de Lula, mas não como cabeça de chapa. Isso dependeria de Aécio Neves trocar o ninho tucano pelo PMDB. Há quem diga que isso é uma espécie de desejo secreto do presidente. Mas será que não há mesmo ninguém no Partido dos Trabalhadores sonhando em ocupar o Planalto depois de Lula?

Um nome do PT que é sempre lembrado é o da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef. Ela tem se destacado pela atuação firme e pela imagem de técnica inteligente. Ela poderia ser ajudada por um turbilhão de presença feminina ativa na política internacional: Michele Bachelet no Chile e Cristina Kirschner na Argentina; nos Estados Unidos, a pré-candidatura de Hillary Clinton. A ministra Dilma, se o governo Lula continuar numa maré de razoabilidade, ainda terá a seu favor um bom cabo eleitoral para 2010.

Conforme sugerimos acima, é precipitado fazer desde já projeções para 2010. É bom não esquecer que José Serra, grande favorito para a próxima corrida presidencial, não vive um momento tão esplendoroso assim na sua carreira. No seu governo, há grandes problemas semelhantes aos que vive o governo federal, envolvendo inclusive cartões de natureza parecida com os corporativos. Ademais, foram descobertas recentemente suspeitas de irregularidade na sua campanha presidencial de 2002. E o governador tem encontrado dificuldades até mesmo de emplacar suas idéias no partido, notadamente as referentes à sucessão da prefeitura paulistana, na qual ele gostaria de ver seu partido engajado na reeleição de Gilberto Kassab. Todo esse clima tende a se agravar – ou se ampliar – até o pleito de 2010.

Dilma Roussef, se se mantiver em posição desfavorável nas pesquisas, certamente será num primeiro momento poupada de ataques. Tendo, porém, seu nome mais divulgado, expor-se-á às críticas, mas ficará mais conhecida do eleitor. A postura séria, decidida e equilibrada que ela mostra nas suas aparições certamente tem o objetivo de, por antecipação, apagar – ou polir – a imagem de guerrilheira que, provavelmente, será rememorada pelos adversários se ela entrar na disputa. Mas, depois de Lula, é provável que o eleitor não acredite mais em histórias de bicho-papão!

E ainda estamos em fevereiro de 2008...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fidel Vive

E finalmente Fidel Castro renunciou ao comando de Cuba. Na definição do presidente Lula, o líder da revolução cubana é um mito vivo. E como todo mito que se preza, a vida do comandante é marcada por contradições, e seu legado divide opiniões.

Gostaria de ter a convicção daqueles que tão tranqüilamente classificam o regime cubano de ditadura. Eu seria mais ponderado, e preferiria chamar a nação cubana de um regime revolucionário, decerto que não adepto de princípios democráticos com os quais as sociedades modernas ocidentais estão acostumadas.

Não se vêem em Cuba, portanto, as características básicas da democracia burguesa, que são, entre outras, as eleições livres e diretas (ou pretensamente livres e diretas) e certas liberdades, que em nações capitalistas delimitam-se pela liberdade alheia (a minha termina onde começa a sua e por aí vai).

Faltam em Cuba, pois, as chamadas liberdades civis, além de direitos políticos dos cidadãos e alternância no poder. Os que mais se preocupam com essas coisas, porém, parecem não lhes dar tanta importância assim quando o assunto é, por exemplo, a China. Talvez porque o país asiático tenha feito uma abertura econômica radical e a sua pujança tenha ajudado o extraordinário montante de circulação de mercadorias mundo afora, o que faz os vigilantes da democracia se despreocupar um pouco das coisas da política.

Muitas entidades, algumas independentes, acertadamente sempre denunciaram o desrespeito aos direitos humanos e perseguição a dissidentes em Cuba. Este blog humildemente reforça tal condenação ao regime cubano. É difícil, no entanto, aceitar tal tipo de crítica se vinda dos Estados Unidos. Não sei por que, mas não levo a sério quando as autoridades deste país, dirigido há oito anos por um ex-governador do Texas, arriscam falar em direitos humanos. Alô, Abu Ghraib!

A situação econômica de Cuba é bastante preocupante, mas isso em grande medida por culpa do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos há décadas. Mas depoimentos do presidente George W. Bush dão a entender que a potência norte-americana pode rever tal medida. Isso dependerá de mudanças no quadro político, como, por exemplo, a convocação de eleições livres, limpas e diretas para presidente da Ilha. Espera-se, todavia, que tais eleições sejam um pouco mais “limpas” do que as que deram o primeiro mandato para Bush. E olha que a Flórida fica bem pertinho de Cuba...!

Em terras tupiniquins não faltam os que irrefletidamente repetem os mesmos bordões contra Cuba e Fidel. Estranhamente tais discursos vêm daqueles que mais esbravejam contra os péssimos serviços públicos do Brasil, notadamente a saúde e a educação, o que geralmente vem a reboque da velha choradeira contra a carga tributária. Mas não é que em Cuba tais serviços funcionam muito bem! Um bom contra-argumento é o de que não é difícil para o país socialista ter serviços de saúde e educação melhores do que os do Brasil; mas o diabo é que a “ilhota” sobressai nesses quesitos também em relação a algumas nações bem mais desenvolvidas do que a nossa, inclusive em relação aos Estados Unidos em alguns pontos.

Mas nem só de educação e saúde vive o homem! É bom também ter Internet rápida, celular de última geração e poder comprar um CD de Pharoah Sanders na Fnac. Ora, ora, ora, mas como bem indagou há alguns anos o psicanalista Contardo Calligaris, falando justamente de polêmica a respeito da mesma Cuba, por que temos de fazer opções e ser tão excludentes? Caramba, eu quero a educação de primeira de Cuba e quero também a Internet veloz de qualquer democraciazinha, inclusive do Brasil!

Quase 50 anos depois, Fidel sai um pouco de cena. É muito difícil prever os próximos passos de Cuba, agora sob a liderança de seu irmão Raúl. Cientistas políticos já estão fazendo previsões, e, como sempre, falando uma série de coisas que faz as pessoas perguntarem o que há de tão especial na formação dessas sumidades, se elas falam “bobagens” que qualquer sujeito, de qualquer profissão, em tese pode falar.

Interessante que não apenas esta postagem, mas muitos outros textos e comentários vêm-se referindo a Fidel quase como se fosse um obituário. Mas o homem está vivo! Talvez o longo período no poder esteja sendo confundido com a própria vida do comandante. Por isso, a renúncia acaba parecendo quase morte. Fidel precisa continuar vivendo. Mesmo fora da liderança do país, ele poderia continuar com suas longas intervenções e discursos. A saúde debilitada certamente o impedirá. Restarão, pois, os longos artigos: é uma maneira de se manter vivo.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

São outros valores, estúpido!

A corrida no partido democrata para as eleições americanas deste ano está trazendo momentos de emoção que talvez superem os da própria briga direta pela Casa Branca. Enquanto a candidatura republicana já parece consolidada no nome de John McCain, dentre os democratas a “mulher” e o “negro” disputam ferrenhamente cada voto.

O que será que está por trás do histórico embate?

A “mulher” é ninguém menos do que Hillary Clinton, a ex-primeira-dama. A face da campanha de seu marido quando candidato foi definida, conta-se, no momento em que um assessor, numa dessas infindáveis discussões acerca de estratégias de campanha, gritou: “é a economia, estúpido!”.

Karl Marx talvez dissesse: “é sempre a economia, estúpidos!”. Para o filósofo alemão, a forma como os homens produzem e reproduzem a sua vida material é que determina sua vida social e espiritual. Noutras palavras, a questão econômica é com efeito, em última análise, o fator mais importante da existência humana, é o que determina as nossas idéias, além de nossas relações sociais e políticas. Outro pensador germânico, Max Weber, contesta o teórico do socialismo científico, afirmando que Marx não distingue o que é “rigorosamente econômico” daquilo que é “economicamente determinado” ou do que é simplesmente “economicamente relevante”. Digamos que Weber reconheceria a importância de aspectos econômicos na invasão americana no Iraque, por exemplo. Porém, ele não admitiria o fato de que aquele conflito seja “essencialmente econômico” ou que todas as suas facetas se resumiriam, em última instância, a interesses de caráter material.

Tudo isso para dizer que, não obstante o momento crítico da economia dos Estados Unidos, o que se percebe da peleja dos senadores Obama e Hillary é a entrada em cena de outros valores, que trazem à baila, evidentemente, a questão feminina e racial. Nenhum dos dois parece abraçar causas, por motivos óbvios da política; mas todo mundo sabe que o grande interesse por essas prévias é o ineditismo da situação: pelo menos um dos candidatos será de características nunca antes – diretamente - representadas na corrida presidencial daquele país.

Como dizia o Barão de Itararé, “de onde menos se espera é que não vem nada mesmo”. A pendenga americana, já nessa fase de prévia, poderia estar debatendo profundamente a questão econômica, dados os riscos de recessão e os indicadores de crise que se observam naquele país. Mas não está.

Por enquanto a disputa está bem divertida do lado democrata. Confirmado o nome de um dos dois, certamente o tema da economia vai entrar em campo com toda força. De todo modo, ficará sempre a lembrança da importância da corrida presidencial de 2008, pelo componente cultural que as pré-candidaturas de Barack Obama e Hillary Clinton trouxeram para o cenário político americano, cujas nuances devem influenciar todo o mundo. Quem sabe aqui no Brasil não tenhamos um negro ou uma mulher com chances efetivas de “levar” o Planalto em 2010?

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Dylan e os "outros"

Em postagem anterior, erramos e acertamos acerca da vinda do genial Bob Dylan ao Brasil. Diferentemente do que disséramos, o mestre fará duas apresentações na cidade de São Paulo (pelo que se vê no site oficial do artista, a metrópole brasileira será a única cidade da América do Sul com mais de uma apresentação de sua atual turnê). E de acordo com o que já suspeitávamos, as apresentações serão a preço de ouro na Via Funchal (no momento em que publicamos esta, há ainda ingressos que variam de R$400,00 a R$900,00).

Este pobre blogueiro (e bota pobre nisso!) ficará de fora dessa rara – e cara – oportunidade. Por isso, para compensar, venho ouvindo muito Dylan: os sulcos do espetacular Blood on the Tracks (1974) têm sentido o toque da agulha do meu persistente toca-discos, e meu MP3 player está recheado de faixas esparsas dos álbuns The Freewheelin’ Bob Dylan (1963), Highway 61 Revisited (1965) e John Wesley Harding (1967).

Mas minha maior vontade no momento é a de lembrar o Dylan compositor, de cancioneiro gravado ad nauseam mundo afora, por artistas dos mais variados gêneros, e em todas as épocas. Vai aí uma lista de algumas das melhores canções de Robert Allen Zimmerman em outras vozes nem sempre tão anasaladas:

“All Along the Watchtower”, com Jimi Hendrix ou Bobby Womack;
“You Ain’t Going Nowhere” e “The Times They Are A-Changin’”, com The Byrds;
“My Back Pages”, com os Byrds de novo e também com Keith Jarrett;
“It’s All Over Now, Baby Blue”, com Them ou The Chocolate Watchband;
“Blowin’ in the Wind”, com Sam Cooke;
“I’ll Keep it With Mine”, com Nico;
“Jack O’ Diamonds”, com Fairport Convention;
“Knockin’ On Heaven’s Door”, com Eric Clapton;
“A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, com Edie Brickell;
“If You Gotta Go”, com The Flying Burrito Brothers;
“Tears of Rage” e “I Shall Be Released”, com The Band.

Merece alguma consideração a versão em português - em verdade quase uma tradução – de “It’s All Over Now, Baby Blue”, feita por Caetano Veloso, bela na interpretação de Gal Costa, sob o título de “Negro Amor”; é boa também a leitura afro-pop de “Chimes of Freedom” por Youssou N’Dour; por fim, é interessante a “subversão” de “Subterranean Homesick Blues” feita pelo Red Hot Chili Peppers.

E você, caro leitor, citaria alguma de Dylan interpretada por outrem, que por acaso não tenha sido mencionada aqui?

É a estupidez, economista!

De uns anos para cá virou um clichê na fala de políticos, jornalistas e economistas afirmar que alguns razoáveis resultados da economia brasileira eram em virtude dos bons ventos que sopravam no cenário internacional desde que o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência. Muitos não apenas o diziam como forma de desqualificar o trabalho do atual presidente e de seus colaboradores, mas, principalmente, como forma de justificar os resultados abaixo de medíocre de seu antecessor.

Mas finalmente uma crise internacional chegou; e ela vem justamente da maior potência econômica do planeta, grande balizadora de um mundo interligado e de economia altamente globalizada. E por incrível que pareça o Brasil não foi à bancarrota.

“Não foi ainda”, dizem alguns. É verdade. Não há pensar que o Brasil ficará tão incólume assim, caso a recessão americana se aprofunde. Não deixa de ser surpreendente, porém, o fato de o Brasil não ter enviado, “ainda”, algum ministro para Washington com o pires na mão, como se apressou em dizer o próprio presidente Lula. Como o leitor deve se lembrar, há alguns anos, no primeiro sinal de crise, todo mundo aqui no Brasil começava a pedir os sais.

Aliás, tem sido um tanto constrangedora a posição dos que apostam no agravamento da crise americana e de seus inevitáveis estragos na economia brasileira, pois muitos não conseguem sequer disfarçar o clima de torcida para que isso ocorra.

Este blog, mais despreocupado das coisas da política, espera humildemente que o Brasil sofra o menos possível com a crise. O governo, de algum modo, fez sua parte, ao rechaçar a ALCA e em ter ampliado o número de parceiros comerciais em todos os continentes, o que, sem dúvida, dá algum alento no momento em que a crise parece bem localizada em terras estadunidenses.

Não vou me lembrar com exatidão, pois já faz algum tempo, mas houve uma revista brasileira de grande circulação que tripudiou com o fato de a política externa brasileira mostrar-se um pouco distante dos Estados Unidos. A sua capa dizia algo como sendo aquela atitude “arrogância ou estupidez”. Sejam quais tenham sido os substantivos usados pelo semanário, eles refletem o que muita gente sempre pensou da ousadia de um posicionamento não tão próximo da “nação-umbigo” do mundo.

Até o momento – quem diria! - parece que a tal “estupidez” vem nos segurando.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Por essa, "as oposições" não esperavam

Há duas frentes de oposição ao Governo Federal no Brasil.

A primeira delas pode ser chamada de legítima: é aquela representada majoritariamente pelo DEM e pelo PSDB, além do PPS e, em menor escala, pelo PSOL, sendo que a deste último é um tipo de oposição diferente, marcada por motivos diversos aos daqueles grupos que realmente lutam pela – ou estiveram na – chefia do governo brasileiro.

A outra oposição pode ser chamada de ilegítima: é a representada pelos mais poderosos grupos de mídia do país. Ao contrário dos integrantes dos partidos políticos acima mencionados, os grandes jornais e revistas ou a maior rede de televisão não foram eleitos diretamente pela vontade dos milhões de pessoas que desaprovam o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva; tal oposição, entretanto, é por diversas vezes mais barulhenta e, não raro, mais organizada.

Ambas parecem ter ficado perplexas com alguns dos desdobramentos da chamada “farra” dos cartões corporativos.

A antecipação por parte da liderança do governo em colher assinaturas para uma CPI pegou muita gente de surpresa. Há um detalhe no pedido formulado pelo líder do governo no Senado, Romero Jucá: a investigação tem que ser ampla o suficiente para contemplar o período do governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se iniciou o uso dos famigerados cartões.

Viram-se na oposição algumas manifestações, que, não obstante a marca do cinismo que ostentam, são por demais didáticas para aqueles que acompanham os acontecimentos políticos: segundo o UOL, o Senador Demóstenes Torres, do DEM, disse que uma CPI que pretende ser tão ampla já está fadada a acabar em pizza, como que já insinuando um grande acordo para ninguém sair chamuscado. Ora, se o DEMocrata estiver certo, deve ser porque sabe que o governo do antecessor do presidente Lula teria muito o que temer na investigação. Aliás, se o leitor permite, cabe uma pergunta ingênua: se o senador goiano realmente estiver certo, não seria um motivo a mais para que a CPI ocorresse, obrigatoriamente, nos termos apresentados pela solicitação governista?

Ainda na mesma linha, o Deputado Antônio Carlos Pannunzio, do PSDB paulista, em mensagem publicada no sítio Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, declarou que uma CPI de verdade tem que ser apresentada pelo grupo adversário, pois quando os próprios investigados se mostram interessados pela instauração da Comissão estão usando de um tipo de ardil que de cara a esvazia ou a torna sem sentido. Ora, ora, ora! Se realmente é assim, somos forçados a concluir que sempre que algum político, em qualquer instância, acusa um determinado governo de sufocar CPIs, ou de atrapalhar seu andamento e coisas assim, está apenas fazendo um jogo de cena, pois, de acordo com o raciocínio de Pannunzio, a boa CPI é essa mesmo, qual seja, aquela que o governo de plantão ou outros de seus investigados tentam passar por cima com o rolo compressor.

Obrigado, nobres parlamentares Demóstenes Torres e Antônio Carlos Pannunzio! Nunca mais encararemos as CPIs com tanta ingenuidade!

A “outra” oposição, a representada pelos meios de comunicação, também tem se mostrado perdida com o caso dos cartões.

A velha e boa imprensa tem tentado vender a idéia de que a sua operosidade é que levou o caso a obter uma importante repercussão, a ponto de derrubar ministro, fazer que outro devolva dinheiro, que um terceiro tenha que se justificar. Mas, em verdade, todos sabem que o caso só está tendo tamanha amplitude graças à transparência do Governo Federal, que tornou os dados referentes aos gastos de seus servidores e agentes disponíveis a toda população, através do site da CGU. Aliás, deve-se acrescentar que, fosse a nossa mídia realmente diligente, os gastos da ex-ministra Matilde Ribeiro, por exemplo, não teriam chegado a um terço do que foi apresentado, pois algum jornalista inteligente (ou algum estagiário muito esperto) já teria verificado algo de estranho nas operações feitas com o cartão dela e denunciado ainda em tempo de estancar a sangria de mais de 170 mil. Admita-se, porém, que toda a sociedade poderia já ter criado o hábito de acompanhar esses gastos mais cedo e, conseqüentemente, ter exercido algum tipo de pressão sobre o governo.

A imprensa (metida a partido político, na opinião tanto de um estudioso do nível de Wanderley Guilherme dos Santos quanto do prefeito do Rio, César Maia) também parece pega de surpresa com a decisão governista de pedir uma CPI. Mas o que parece tê-la deixado realmente numa situação complicada foram os gastos com cartões semelhantes ao do Governo Federal perpetrados pelo Governo do Estado de São Paulo. A Folha somente deu destaque ao assunto após ser pressionada publicamente por Paulo Henrique Amorim (que apelidou a imprensa de PIG – Partido da Imprensa Golpista!), sendo obrigada a admitir, ainda que timidamente, que o sistema federal é mais transparente. Todavia, conforme notou o blog de Eduardo Guimarães, o jornalão, simpaticíssimo ao governo tucano de São Paulo, resolveu fazer valer o seu manual e deu um importante espaço ao “outro lado”, prática que também deveria observar quando difundisse denúncias e críticas ao Governo Federal.

As “oposições” fariam muito bem nessa altura do campeonato se não permitissem retrocessos na transparência dos gastos públicos. Não apenas precisariam impedir que o Governo Federal dificultasse o acesso a seus gastos ou ressuscitasse formas de despesa de difícil rastreamento, como deveriam obrigar as outras instâncias governamentais a que agissem com a mesma transparência. O primeiro passo poderia ser cobrar isso do Governo do Estado de São Paulo, tanto pela sua importância meramente simbólica quanto, mais prosaicamente, pelo volume nada módico de suas despesas.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Tenório Jr. e a ironia da tragédia


Se é que se pode classificar de irônica uma tragédia, sem dúvida foi a que se abateu sobre o músico brasileiro Tenório Jr.

Tendo o Brasil vivido sob uma cruel ditadura militar, o pianista acabou virando vítima de repressores de semelhante regime na vizinha Argentina, e isso mesmo antes de ela se instalar - mais precisamente, seis dias antes. Não constam de suas curtas biografias disponíveis na rede que o artista tivesse sofrido problemas com os militares no Brasil, até porque, aparentemente, ele não tinha ligações com grupos políticos de resistência no País.

A história foi a seguinte: em 1976 Tenório saiu em excursão por Buenos Aires como músico de apoio da dupla Toquinho e Vinícius. Na madrugada de 18 de março saiu para comer algo e comprar um remédio. Não voltou mais, preso poe grupos de repressão que viriam a promover um golpe na Argentina.

Francisco Tenório de Cerqueira Junior certamente foi preso, torturado e morto por engano. Toquinho, em entrevista à Carta Maior em 2003, conjeturou que a aparência “terrorística” do músico carioca (cabeludo e barbudo) deve ter levado os repressores sanguinários a cometer a barbaridade sem maiores cerimônias. Tristemente, Tenório foi apenas mais um.

Tenório Jr. teve uma carreira produtiva, principalmente acompanhando grandes nomes da música brasileira e também como integrante do legendário Os Cobras, mas conta com apenas um disco próprio: o espetacular Embalo, de 1964, álbum bastante representativo da vertente carioca do samba-jazz, gênero também conhecido como MPM (música popular moderna). Importante: trata-se de música brasileira moderna mesmo, nada a ver, portanto, com o lixo disseminado por rádios como a famigerada Nova Brasil FM, a que muitos são obrigados a ouvir no local de trabalho ou no som ambiente de algumas lojas e restaurantes.

Segundo as notas do próprio Tenório, presentes na contracapa de Embalo, o pianista contava, então, com 23 anos, era estudante do 4° ano de medicina e, nas “horas vagas”, dedicava-se ao trio que formara com o baterista Milton Banana e o baixista Zezinho.

Este álbum do mágico ano de 1964, no entanto, está no formato de grupo, destacando, além dos dois músicos citados, vários outros nomes proeminentes do samba-jazz. Como era de praxe nos lançamentos do gênero, há algumas excitantes releituras de grandes clássicos da época. Mas o melhor está nas próprias composições de Tenório, que, além da faixa-título, escreveu “Nebulosa”, “Samadhi”, “Néctar” e “Estou Nessa Agora”, e no auxílio de seu companheiro do trio, o baixista Zezinho Alves, compositor da maravilhosa “Carnaval sem Assunto”, que encerra o álbum. Dentre os standards (se é que assim podemos chamar), o destaque vai para o belíssimo arranjo de “Fim de Semana em Eldorado”, de Johnny Alf.

O disco, originalmente editado pela RGE, foi relançado em CD pela Dubas em 2004 e, em 2006, pela Som Livre. Vale a procura.

A absurda história de vida do excepcional pianista talvez ajude a despertar o interesse pela audição de Embalo, ainda que os arroubos apaixonados de seus comentadores possam parecer peças mais interessantes do que o próprio disco, como ocorre, segundo a opinião de muitos, com o brilhante texto de Lester Bangs sobre Astral Weeks: há quem diga que a resenha do “rockrítico” americano é mais tocante do que a fruição do clássico absoluto de Van Morrison. Mas seja lá como for, o presente texto não pode se arrogar tal pretensão, o que é ótimo para a memória de Tenório Jr. e para a perpetuação do respeito a um genial disco da música brasileira!


Ouça abaixo a faixa "Nebulosa", de autoria do próprio Tenório Jr.

Atenção: este país tem um "alarde"!

Os leitores um pouco mais velhos, mas ainda possuidores de razoável memória, talvez se lembrem de uma antiga campanha publicitária do jornal Folha de São Paulo que dizia: “Atenção: este país tem um alarme”. O “alarme”, por óbvio, era o diário paulistano, que naqueles tempos destacava-se por um jornalismo investigativo e perscrutador.

Lembrei-me disso porque, para o Presidente Luiz Inácio da Silva, está-se fazendo muito “alarde” na questão dos mais recentes dados sobre o desmatamento (o desmate, como diz a Folha) na Amazônia. O alarde é do INPE, das ONGs e até mesmo do Ministério do Meio Ambiente, mas está sendo sobejamente difundido pela nossa dedicadíssima imprensa. O presidente, sabedor da opção preferencial da mídia pela má notícia, talvez tivesse vontade de dizer: “Atenção: este país tem um ‘alarde’”.

Sei bem quão infame é o trocadilho e não nego que possa ser algo despropositada a brincadeira. Mas fiquei com isso na cabeça ao acompanhar a força crítica que a triste notícia vem ganhando nos órgãos midiáticos tupiniquins.

O primeiro ponto a se levantar é o de que o Brasil apresentou nos últimos três anos dados que apontavam para um ritmo consideravelmente menor de desmatamento. Propagados na imprensa estrangeira, os números, dignos de rasgados elogios nos mais importantes órgãos informativos mundo afora, não mereceram muito “alarde” por parte da mídia nativa.

O segundo aspecto a ser destacado é a má vontade apresentada por certos setores, inclusive a imprensa, para com o Ministério comandado por Marina Silva, acusado de ser linha-dura o suficiente a ponto de impedir o crescimento do PIB brasileiro acima de outros países que não o açoitado Haiti, especialmente no ano eleitoral de 2006. O jornal O Estado de São Paulo chegou a publicar editorial responsabilizando uma suposta pequenez de visão dos ecologistas pelos números então raquíticos do crescimento brasileiro. E os ecologistas e toda a turma do Ministério do Meio Ambiente que se preparem: se faltar, por exemplo, energia no Brasil, os jornais vão soltar o verbo, acusando a trupe de Marina, as ONGs e os demais simpatizantes da causa verde pelas dificuldades de concessão de licenças ambientais e pelo atraso de licitações para obras de interesse da matéria.

Um terceiro e bastante representativo viés sobre o assunto são os rumores de que o desmate se deu por conta do aumento de produção de gêneros ligados à pecuária e ao setor de agronegócios. Não por acaso os dois segmentos são responsáveis, em grande medida, pela relativa melhoria nos indicadores econômicos brasileiros, o que comprova a evidente hipocrisia dos meios de comunicação, que, agora – e somente agora –, fingem estar preocupados com a dizimação de nossas florestas. É fácil falar do que se vê; difícil é imaginar o “como seria”. Mas não duvido que se o setor agrário estivesse caindo pelas tabelas, porém com uma Amazônia preservada, a mídia também estaria descendo o pau no governo brasileiro, com direito a alguns estilhaços aos ecologistas “retrógrados”.

Muitos sempre torcem o nariz quando o assunto escorrega para um terreno ideologicamente pantanoso, mas a grande verdade é que o drama ecológico, em todas as suas formas, está ligado ao que se poderia chamar de ordem capitalista internacional. Não há o que dizer: a discussão sobre o tema se resume a uma situação de crise estrutural do sistema. Em verdade, a própria agenda ecológica somente ganhou espaço nas últimas décadas porque o capital passou a se reproduzir num ritmo mais rápido do que a natureza. Com efeito, é assombroso pensar que boa parte do que se consome diariamente no mundo é puro desperdício ou é mau uso de recursos naturais. Mais apavorante ainda é pensar que, se amanhã acordássemos todos conscientes e passássemos a apenas consumir o que de fato necessitamos e – mais ainda - fôssemos tomados do mais cerimonioso respeito pela natureza, o mundo, sem sombra de dúvidas, iria à bancarrota.

Bobagem? Os problemas ambientais nada têm a ver com o modelo de produção econômica? Ótimo! Então que se avise aos Estados Unidos, para que ratifiquem logo o Protocolo de Kyoto! E as florestas de países mais desenvolvidos, onde é que estão?

Dinheiro, cheque ou cartão?

A divulgação de gastos de alguns ministros com os chamados cartões corporativos do governo federal deixou muita gente estarrecida. É, de fato, difícil não ficar assombrado com os vultosos números apresentados sobretudo pela já ex-Secretária Especial de Promoção da Igualdade Racial Matilde Ribeiro.

O caso está sob análise e investigação, e qualquer pré-julgamento é, em princípio, condenável. De todo modo é difícil aceitar os gastos de Matilde Ribeiro especialmente com aluguel de carros, os quais ultrapassam a casa dos cem mil reais no ano de 2007. É bem provável que haja algo mal contado nessa história, mas mesmo que tal tipo de gasto tenha sido legal, não se pode deixar de considerá-lo imoral, afinal a secretária com status de ministra poderia deslocar-se para suas atividades de ônibus, trens, metrôs, eventualmente a pé. Embora se deva fazer a ressalva que, no assunto, poucos poderiam jogar a primeira pedra, tendo em vista que a maioria das pessoas, sobretudo os pretencentes à classe média, que são os que mais esbravejam com esse estado de coisas, não sabe sequer ir à padaria da esquina a pé. Preferimos, por ora, que tal crítica fique restrita aos que não usam automóveis, exceto nas situações de extrema necessidade.

É estarrecedor também o fato de que a relação dos gastos com os tais cartões corporativos estejam à disposição do cidadão no site da Controladoria-Geral da União, e ainda assim não tenha aparecido ninguém para chamar a atenção publicamente da Secretária. E se havia problemas de estrutura na sua pasta que supostamente justificariam os gastos, ela deveria ter deixado a sociedade a par disso antes.

Os cartões corporativos, criados ainda no governo FHC, tinham justamente o objetivo de disciplinar os gastos dos servidores públicos, pois aparentemente seu uso seria mais confiável do que o velho expediente de somente apresentar as notas e depois pedir o reembolso. Parece que a coisa não é tão simples. O problema, diriam alguns, é a tentação: se ao cartão de crédito comum, que o cidadão sabe que a fatura virá para ele mesmo, muitas vezes é difícil resistir, o que dizer de um cuja conta vai ficar para toda a sociedade? Haja consciência, dizem eles. De todo modo, um aspecto positivo dos cartões corporativos é a possibilidade de se ficar atento aos gastos de seus responsáveis, acompanhando os respectivos lançamentos no sítio cujo link se encontra no parágrafo anterior. Observada qualquer coisa estranha, a sociedade precisa fazer barulho.

Mas há um perigo a ser vigiado: a crise dos cartões recaindo exatamente sobre a responsável por uma pertinente pasta ligada ao complicado tema da questão racial pode aflorar as desagradáveis idéias de nosso já consagrado racismo cordial. Não seria de se espantar se o Ali Kamel, por exemplo, uma hora dessas aproveitasse para divulgar seu livro, chamando a atenção para a possível simbologia contida nos gastos de energia e de dinheiro com um assunto que, segundo ele, é inútil. Os beneficiários do velho modelo de acesso às universidades podem também encontrar nesse imbróglio motivos para desqualificar a luta pelo implemento das cotas raciais. Em suma, não é de todo disparatado vislumbrar-se, em decorrência do escândalo dos cartões, prejuízos à nobre causa do movimento negro no Brasil. Já se vêem sinais da contra-ofensiva preconceituosa, por exemplo, na apressada “exumação” da entrevista que a ex-ministra deu à BBC, a qual conta com uma frase que, por culpa da nossa péssima capacidade de interpretação de texto, ganhou um destaque muito maior do que merecia. Não cabe falar muito sobre isso agora. Prometemos voltar ao tema se ele infelizmente acabar enveredando por esse caminho.