sábado, 2 de fevereiro de 2008

Dinheiro, cheque ou cartão?

A divulgação de gastos de alguns ministros com os chamados cartões corporativos do governo federal deixou muita gente estarrecida. É, de fato, difícil não ficar assombrado com os vultosos números apresentados sobretudo pela já ex-Secretária Especial de Promoção da Igualdade Racial Matilde Ribeiro.

O caso está sob análise e investigação, e qualquer pré-julgamento é, em princípio, condenável. De todo modo é difícil aceitar os gastos de Matilde Ribeiro especialmente com aluguel de carros, os quais ultrapassam a casa dos cem mil reais no ano de 2007. É bem provável que haja algo mal contado nessa história, mas mesmo que tal tipo de gasto tenha sido legal, não se pode deixar de considerá-lo imoral, afinal a secretária com status de ministra poderia deslocar-se para suas atividades de ônibus, trens, metrôs, eventualmente a pé. Embora se deva fazer a ressalva que, no assunto, poucos poderiam jogar a primeira pedra, tendo em vista que a maioria das pessoas, sobretudo os pretencentes à classe média, que são os que mais esbravejam com esse estado de coisas, não sabe sequer ir à padaria da esquina a pé. Preferimos, por ora, que tal crítica fique restrita aos que não usam automóveis, exceto nas situações de extrema necessidade.

É estarrecedor também o fato de que a relação dos gastos com os tais cartões corporativos estejam à disposição do cidadão no site da Controladoria-Geral da União, e ainda assim não tenha aparecido ninguém para chamar a atenção publicamente da Secretária. E se havia problemas de estrutura na sua pasta que supostamente justificariam os gastos, ela deveria ter deixado a sociedade a par disso antes.

Os cartões corporativos, criados ainda no governo FHC, tinham justamente o objetivo de disciplinar os gastos dos servidores públicos, pois aparentemente seu uso seria mais confiável do que o velho expediente de somente apresentar as notas e depois pedir o reembolso. Parece que a coisa não é tão simples. O problema, diriam alguns, é a tentação: se ao cartão de crédito comum, que o cidadão sabe que a fatura virá para ele mesmo, muitas vezes é difícil resistir, o que dizer de um cuja conta vai ficar para toda a sociedade? Haja consciência, dizem eles. De todo modo, um aspecto positivo dos cartões corporativos é a possibilidade de se ficar atento aos gastos de seus responsáveis, acompanhando os respectivos lançamentos no sítio cujo link se encontra no parágrafo anterior. Observada qualquer coisa estranha, a sociedade precisa fazer barulho.

Mas há um perigo a ser vigiado: a crise dos cartões recaindo exatamente sobre a responsável por uma pertinente pasta ligada ao complicado tema da questão racial pode aflorar as desagradáveis idéias de nosso já consagrado racismo cordial. Não seria de se espantar se o Ali Kamel, por exemplo, uma hora dessas aproveitasse para divulgar seu livro, chamando a atenção para a possível simbologia contida nos gastos de energia e de dinheiro com um assunto que, segundo ele, é inútil. Os beneficiários do velho modelo de acesso às universidades podem também encontrar nesse imbróglio motivos para desqualificar a luta pelo implemento das cotas raciais. Em suma, não é de todo disparatado vislumbrar-se, em decorrência do escândalo dos cartões, prejuízos à nobre causa do movimento negro no Brasil. Já se vêem sinais da contra-ofensiva preconceituosa, por exemplo, na apressada “exumação” da entrevista que a ex-ministra deu à BBC, a qual conta com uma frase que, por culpa da nossa péssima capacidade de interpretação de texto, ganhou um destaque muito maior do que merecia. Não cabe falar muito sobre isso agora. Prometemos voltar ao tema se ele infelizmente acabar enveredando por esse caminho.

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