sábado, 30 de agosto de 2008

Petróleo e eleições

Segue abaixo colaboração do historiador José Raimundo. Trata-se de um texto provocativo que debate o que devemos esperar do Brasil após as importantes descobertas do pré-sal e como o assunto perpassa pelo tema "eleições 2008", sobretudo na cidade de São Paulo.

Este espaço coloca-se à disposição dos que discordam do professor "Zé Raimundo" ou que queiram de alguma forma participar do debate.


Eleições em São Paulo, petróleo e o futuro do Brasil - por José Raimundo

Em que pese a chatice gerada pela propaganda eleitoral, no rádio e na TV, é importante atentarmos para o fato de que paralela a esta questão existe uma outra discussão já iniciada, que trata da descoberta de petróleo na camada pré-sal (fundo do mar, numa área que vai do Espírito Santo a Santa Catarina) e que as estimativas feitas dão conta da existência de mais de 50 bilhões de barris de petróleo de boa qualidade.
Alguém sabe quanto isto significa em dólares ou mesmo em Real? Um valor incalculável de muitos bilhões e que pode muito bem tirar o Brasil do seu secular atraso e colocá-lo na senda do desenvolvimento. Tudo vai depender de como a população irá organizar-se para intervir neste debate. Isto porque as empresas estrangeiras e grupos econômicos internos descompromissados com o Brasil e sua gente já se articulam para abocanhar essa riqueza.
Se não nos engajarmos nisto agora poderá haver uma repetição, resguardadas as devidas proporções de tempo, do que ocorreu com a nossa riqueza gerada através da cana-de-açúcar, de Pernambuco, nos séculos XVI e XVII, do ouro, de Minas Gerais, no século XVIII, do algodão e do café, nos séculos XIX e XX, e da qual nada sobrou para o povo, que, apesar de tudo, continuou pobre e, na sua maioria, excluído.
Não se trata aqui de nacionalismo tacanho, ou de querer ideologizar o assunto, mas a defesa do “mar de petróleo” existente na camada pré-sal interessa a todos nós, e o presidente Lula vem defendendo que este permaneça sob controle do Estado para ser transformado em recurso voltado à educação e ao desenvolvimento do Brasil, tendo em vista acabar com a miséria. Por isto mesmo é preciso que haja um repensar sobre o processo eleitoral deste ano, especialmente em São Paulo, cujo resultado acabará por decidir os rumos das eleições em 2010 para presidente da República e, assim, os destinos dessa riqueza que está a seis mil metros no fundo do Oceano Atlântico.
A quem entregaremos os destinos da nação em 2010? Aos que entre 1994 e 2002 privatizaram (entregaram de bandeja) empresas estatais ricas, lucrativas e consideradas estratégicas, como as siderúrgicas (CSN, Usiminas etc.) e as mineradoras (Vale do Rio Doce, por exemplo), descapitalizando assim o Estado brasileiro ao transferir parte substancial do patrimônio público a particulares, ou devemos mantê-los com o grupo hoje à frente do governo que está demonstrando nesse momento crucial compromisso em preservar essa riqueza nas mãos do Estado e transformá-lo em beneficio para a maioria e não para grupos minoritários de indivíduos que nos últimos 500 anos têm governado o Brasil de costas para o seu povo?
Além do mais, no nosso entendimento, cabe à Petrobrás, com sua estrutura, conhecimento (know-how) e corpo técnico competente operacionalizar e gerir essas descobertas e, ao governo, seu controlador, aumentar significativamente a sua participação acionária no capital da companhia e, se for o caso, estatizá-la por completo, de modo que se dispense a possibilidade de criação de uma nova empresa pública para cuidar dos negócios do petróleo da camada pré-sal.
Toda essa reflexão torna-se fundamental e passa inevitavelmente pela disputa eleitoral deste ano na capital paulista, uma vez que, como foi dito acima, São Paulo possui a vantagem de decidir as eleições presidenciais e, entregar o poder aos alckmins, aos kassabes e aos malufes, é um risco muito sério frente ao que está posto e isto não devemos sequer tolerar, muito menos permitir.
Portanto, o que se pretende é uma profunda reflexão e uma tomada de posição sobre a candidatura de Marta Suplicy à prefeitura da maior e mais importante cidade do Brasil, como parte da estratégia não só para administrar bem São Paulo, mas sobretudo, para 2010, visto que os dois grupos com chance de vitória nestas eleições possuem estratégias distintas sobre esta e outras questões não menos importantes. O primeiro (PT, PSB, PC do B e PDT), não obstante ressalvas, demonstra compromissos que o segundo (PSDB e DEM) já revelou não ter, visto que sua ação política é neoliberal e entreguista, e quem se preocupa de fato com os problemas do nosso país não pode desperdiçar esta oportunidade histórica de eleger uma boa prefeita para o nosso município e ainda poder ajudar a construir um Brasil verdadeiramente para os brasileiros.

Que "coisa"!

A trajetória de Barack Obama é para lá de notável na política americana. Não é à toa que já se vêem alguns livros que contam e debatem sobre sua história. Ao folhear uma dessas revistas de livrarias, deparei com a propaganda de um lançamento em inglês de uma biografia do candidato à presidência dos Estados Unidos. Uma colega que estava próxima a mim fez um comentário inusitado:

-Minha irmã cismou que este cara é “coisa ruim”.

Estranhei o comentário, ainda mais que o carismático Obama conta com uma respeitabilidade internacional raramente vista para um político. Em todo caso, condescendi:

-De fato – disse eu -, presidente americano é presidente americano, e é claro que se eleito ele vai defender os interesses do país dele. É uma grande besteira nós brasileiros acharmos que ele vai ser melhor ou pior para o Brasil, porque no fundo, no fundo ele vai ver o lado deles lá. Por isso – continuei – não é descartado que ele traga, sob certo ponto de vista, alguma coisa de ruim...

-Não – interrompeu-me ela -, você não entendeu. Minha irmã acha que ele é o “coisa ruim”! Quer dizer, a “besta”, entende?

Fiquei desconcertado! Já vi alguns políticos americanos serem apontados como a encarnação da besta, a saber, Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho. Mas esta é a primeira vez que vejo tal suspeita recair sobre um democrata. Sejamos razoáveis, parece que a imagem do “coisa ruim” realmente se encaixa melhor na figura – e nas idéias e atitudes – dos republicanos. Os políticos do Partido Democrata são sempre mais simpáticos e gozam de maior popularidade em nível internacional. Obama se enquadra tão bem nessa tradição que é – repita-se – surpreendente que entre no rol dos “bestáveis”, ainda que seja na isolada opinião da irmã da minha colega de trabalho.

Há, entretanto, um detalhe que nos escapa, mas que talvez não tenha passado despercebido da moça. É a afirmação contida na Bíblia Sagrada de que os enganadores e “falsos profetas” tendem a ter boa lábia e uma eficaz capacidade de persuasão. Sem dúvida, trata-se de ponto negativo para o Obama!

O reconhecimento da importância dos Estados Unidos para o mundo é tão universal que se acredita sempre no fato de que o tinhoso escolheria aquele país para comandar. Está certo! Existem poucas formas tão eficientes quanto ser presidente dos EUA para se ter influência em quase todos recantos do mundo. Esta talvez seja uma maneira para lá de singela de se explicar o que significa a vaga expressão “imperialismo”, não raro associada aos "ianques". Mas quem sabe tudo isso não esteja com os dias contados: algo me diz que em breve as “bestas” estarão nascendo na China!

Eleições Municipais 2008 - São Paulo - O que acontece com Alckmin?

Dentre as explicações para a até aqui decepcionante posição de Geraldo Alckmin nas pesquisas sobre a intenção de votos pela Prefeitura de São Paulo está o fato de o seu partido se apresentar um tanto dividido na disputa. Boa parte da máquina do PSDB está engajada na campanha de reeleição do prefeito Gilberto Kassab, e caciques como o governador José Serra vêm sendo acusados de ter posição não muito convicta no apoio a Alckmin.

Outro aspecto que não se deve descartar – e ele é por demais curioso – é que ocorre com a “direita” na cidade de São Paulo um fenômeno que sempre foi motivo de lamentação nas esquerdas: a desunião. O somatório das intenções de voto em Alckmin, Kassab e Maluf superaria a da ex-prefeita Marta Suplicy, que por ora lidera com relativa folga a disputa, beneficiando-se da pulverização da preferência dos candidatos de perfil mais conservador.

Este blogueiro acreditou que as coisas seriam mais róseas para o candidato tucano, que açambarcaria logo de início considerável parte das intenções de voto no atual prefeito e no folclórico “Dr. Paulo”. Isto não vem ocorrendo. É muito cedo ainda, e talvez o ex-governador acabe conseguindo se apresentar como o principal candidato conservador que tanto agrada a classe média e a elite paulistana, por ora dividida. Porém, como bem lembrou o jornalista Clóvis Rossi, não sem certa desolação, o problema é que, dos quatro primeiros nas pesquisas, o único que efetivamente perdeu votos fora da margem de erro foi justamente o postulante pelo PSDB.

Mas falar em “direita” e “esquerda” nas eleições municipais de São Paulo talvez seja pedantismo. É muito provável que o eleitor médio não se atente a tais questões, pelo menos não de forma muito consciente. E revendo posição anteriormente explicitada, não é nenhum disparate dizer que a candidata Marta Suplicy, do PT, poderia ser a maior beneficiária de certa “desideologização” num eventual segundo turno.

Mas sejamos humildes: se erramos na crença de que Alckmin encontraria vida mansa na disputa pela prefeitura da maior metrópole do país, nada impede que também estejamos enganados agora.

Vamos aguardar.

domingo, 24 de agosto de 2008

Eleições Municipais 2008 - São Paulo - uma questão de classe

Primeiramente, vi no blog Entrelinhas uma notícia, seguida de análise, sobre uma aluna da FAAP que teria dito, após uma palestra da candidata Marta Suplicy naquela instituição, que o problema da ex-prefeita “é que ela não faz nada pelos ricos” (clique aqui para ler). Depois, ouvi com “meus próprios ouvidos” uma colega dizer que Marta só foi boa para os “fins de mundo” da cidade, deixando as regiões mais nobres e os tradicionais redutos de classe média a ver navios.

Cabe aqui lembrar um articulista do Observatório da Imprensa que acerca de polêmica sobre a concentração da alta popularidade do presidente Lula entre os mais pobres, afirmou que o contrário é que deveria ser consideradoo uma anomalia num país desigual como o Brasil, ou seja, um governante ser adorado pelos ricos e odiado pelos mais necessitados. No caso de Marta, cairia bem uma paráfrase: em São Paulo, absurdo teria sido a ex-prefeita ter “feito muito pelos ricos” e ter sido boa apenas para os “umbigos do mundo” fincados na cidade!

Entretanto, não estou muito convencido de que Marta Suplicy não tenha feito nada pelos ricos, até porque numa democracia burguesa os políticos não conseguem sobreviver sem alguns acenos aos mais bem aquinhoados. Tampouco considero que ela tenha feito tanto assim pelas periferias da cidade, ainda mais se pensarmos que, em vista do abandono dos rincões do município, por mais que se faça, as demandas nesses lugares sempre tendem a se multiplicar.

De todo modo, é curioso que na maior cidade do país pareça tão vivo o surrado conceito marxista de luta de classes. É o rico contra o pobre, é o centro contra a periferia! Tal tipo de agenda pode dificultar um pouco as coisas para o principal adversário da candidata do PT, o tucano Geraldo Alckmin. Ele terá que aproveitar a rejeição de Marta entre os paulistanos de melhor renda e das regiões mais centrais da cidade, buscando se fortalecer como o candidato desse segmento. Ao mesmo tempo, precisará galgar pontos entre os mais pobres, sem se deixar colar a imagem de “candidato dos ricos”.

A essa altura, os marqueteiros já devem estar traçando estratégias para “vender” o respectivo candidato como o “prefeito da cidade inteira”, como “aquele que quer trabalhar para cada bairro dessa cidade” e coisas do gênero. Quanto à classe... classe? Que classe?

domingo, 17 de agosto de 2008

Tudo o que você sempre quis saber sobre a Ossétia do Sul

Muitos foram dormir sem saber que existia “uma” Ossétia do Sul; no dia seguinte, ouviam a imprensa referindo-se à região como se estivesse falando de Catanduva, Sete Lagoas, Resende, Campos Mourão, Viamão, Mossoró, Itabuna etc. Noutras palavras, a mídia pretendia nos fazer acreditar que a Ossétia do Sul seria um lugar que não chega a ser São Paulo, Nova York, Manchester, Karachi, Johannesburg etc., mas que seria logo lembrado, ou pelo menos não-estranhado, pela maioria de que dela ouvisse falar.

As informações sobre o conflito que envolve a Rússia e a Geórgia, especialmente na TV, vieram desacompanhadas de alguma explicação sobre suas motivações. A imprensa escrita e alguns sites ainda que pretenderam demonstrar as possíveis implicações geopolíticas da peleja, indicaram o status legal da região e não negligenciaram o substrato econômico da briga, tendo em vista interesses de Rússia e Estados Unidos por uma região que pode ser estratégica para a distribuição de petróleo – até de reaquecimento da guerra fria foi falado.

Mas a BandNews, com o atraso de alguns dias, resolveu fazer um “entenda o conflito”, e ganhou um ponto para a televisão ao tocar num tema que ajudaria o brasileiro médio a compreender as idéias de nacionalismo e separatismo que tanto povoam o noticiário internacional em geral e o caso da Ossétia do Sul - e também da Abkhasia - em particular. Vários confrontos são deflagrados ou sustentados por levantes nacionalistas e separatistas sem que as pessoas consigam entender exatamente o que ocorre e o que está por detrás deles. O trabalho da editoria de internacional da Band foi feliz ao explicar que "a maioria dos moradores da Ossétia do Sul se sentem bem mais ligados à Rússia do que à Geórgia".

Pertencimento: seria essa a expressão indiretamente tocada pelos jornalistas do Grupo Bandeirantes. O conceito de “nação” depende muito dessa idéia. Eu sou de uma nação à medida que me sinto como “pertencente” a ela. No caso do Kosovo, por exemplo, a maioria albanesa da região não se sentia como “pertencendo” à Sérvia; a minoria sérvia do Kosovo, por outro lado, não via motivos por que não “pertencer” à Sérvia e não se sentia, definitivamente, como “pertencente” ao Kosovo.

Mas é claro que tal idéia de pertencimento vai ficar num segundo plano para as grandes potências e para os grandes blocos, que preferirão ver quais as vantagens que podem tirar de uma dada região, sobretudo se ela for rica em minérios ou petróleo! Já as populações dos lugares de disputas nacionalistas e separatistas talvez passem ao largo da preocupação com suas riquezas naturais e com suas condições de sobrevivência e crescimento autônomos, antes se lançando à briga, nas palavras de Eric Hobsbawm, do “nós” contra os “eles”, sem se ter muita certeza do que “nós” temos de diferente “deles”.

Como diria o Paulo Henrique Amorim, a dona Maria, lá da Ossétia do Sul, apesar de estar dentro do Estado da Geórgia, sente-se russa e não georgiana, e daí vêm as idéias de separatismo. Depois disso vêm os senhores da guerra, preocupados com a política, com o poder, com a economia, aproveitando-se da situação, calculando o que se pode ganhar com um possível redesenho da região, além de um Atlas geográfico atualizado. Este foi mais ou menos o jeito que o BandNews explicou o conflito. Talvez tenha ajudado a nós, os leigos, a entendê-lo um pouquinho melhor!

Eleições Municipais 2008 - São Paulo - nova pesquisa IBOPE

Einstein certa vez disse que se num primeiro momento uma idéia não é absurda, então há esperança para ela. A idéia de que Marta Suplicy pode voltar a sagrar-se prefeita de São Paulo no próximo pleito está muito longe de ser absurda. Este blog, entretanto, continua insistindo que as condições são mais favoráveis ao ex-governador Geraldo Alckmin, a despeito da pesquisa IBOPE que mostra a prefeita com 15 pontos de vantagem.

A aritmética conspira a favor do tucano. De acordo com a última pesquisa, Maluf e Kassab detêm juntos 17% da preferência. Parece-nos muito razoável que a maioria esmagadora desse contingente caia nos braços do ex-governador na primeira oportunidade, mesmo que essa oportunidade seja somente no segundo turno. Um ajustezinho aqui, outro acolá, e Alckmin levaria, mesmo que de forma um pouco apertada.

Marta Suplicy pode, porém, estar tendo a seu favor a medíocre administração de Kassab, que traz a lembrança de que ele foi, em verdade, eleito como vice do tucano José Serra, que, apesar das reiteradas promessas, abandonou a prefeitura. Ainda que de forma indireta, isso pode estar atrapalhando Alckmin, pois o eleitor rapidamente o associa com a figura do atual governador e talvez fique vislumbrando a possibilidade de a história se repetir daqui a dois anos. A ex-prefeita, derrotada em 2004, seria a beneficiária natural dessa insatisfação do eleitor por conta daquela, digamos, “traição”. Além disso, Marta, que já conta com boa penetração nas periferias da cidade, pode também estar conquistando algum espaço nas regiões mais centrais e nos redutos de classe média por conta principalmente do trânsito caótico. Ainda que de forma insuficiente, seus investimentos em transporte coletivo e a construção de corredores quando prefeita representaram iniciativas importantes nesse campo. Hoje, dificilmente um jornal de grande circulação estamparia na sua primeira página a reclamação de um comerciante da Avenida Rebouças de que seria um absurdo ele fazer, de carro, em 40 minutos, o mesmo trajeto que um ônibus fazia em dez após a entrada em operação de corredor naquele logradouro! Que “inversão de valores”, deve àquela época ter pensado o rapaz, chancelado pelo nosso grande jornal! A cabeça da classe média tradicional pode ter mudado um tiquinho sobre o assunto e isso talvez esteja beneficiando, ainda que timidamente, a ex-ministra do Turismo.

A pesquisa IBOPE mostra que este blog talvez tenha exagerado no acreditar que as coisas seriam mais fáceis para Geraldo Alckmin na pendenga deste ano. Agora é torcer para que também estejamos errados quanto ao possível abandono da prefeitura antes do tempo tanto por parte da petista quanto do tucano.

sábado, 16 de agosto de 2008

Uma semana sem Isaac Hayes

No domingo 10 de agosto o mundo perdia Isaac Hayes. Problemas particulares e a falta de tempo impediram-me de prestar homenagens ao grande cantor, compositor, produtor, arranjador e instrumentista norte-americano. Queria muito ter durante a semana ouvido os seus discos Hot Buttered Soul ou a trilha de Shaft; adoraria também ter me deleitado ao som de algumas de suas criações na voz de, por exemplo, Sam & Dave; encantar-me-ia, ainda, curtir a sua luxuosa participação em clássicos como Born Under a Bad Sign, de Albert King.

Shaft é, sem a menor sombra de dúvida, uma das melhores trilhas sonoras originais de todos os tempos. Tal afirmação não constitui novidade, haja vista que a maioria dos filmes da chamada blaxploitation contou com boa música. Em Shaft, temos a matéria bruta das trilhas do gênero: balanço funk e soul regados a guitarras wah-wah e uma boa pitada de jazz. Um jazz razoavelmente sem-vergonha é bom que se diga! Neste trabalho, Isaac Hayes certamente deixou-se influenciar pelas belas harmonias do maestro Burt Bacharach, cometendo aquilo que viria a ser rotulado de lounge e easy listening (observe-se que no já mencionado Hot Buttered Soul, Hayes põe o mundo abaixo com uma versão avassaladora de “Walk on By”, além de uma tocante “By the Time I Get to Phoenix”, de Jim Webb, subvertida a um “anti-hit”, com seus quase vinte minutos de duração). Na trilha de 1970, o mestre humildemente incorporou as lições daqueles artesãos pop em boa parte das 15 faixas que assinou, sobretudo em “Ellie’s Love Theme”, “Cafe Regio’s” e “Shaft Strikes Again”. Eis um disco para se levar para uma ilha deserta – não fosse essa idéia um clichê meio ridículo!

Isaac Hayes, legítimo representante da importantíssima escola do soul de Memphis, influenciou de forma efetiva a disco music (gênero aliás do qual diretamente participou), o rap (não apenas pelo hábito de falar sobre as canções, como também pelo visual), e mais recentemente o trip hop (Portishead e Hoover inteligentemente o samplearam há alguns anos). Convenhamos, é raro um artista que consegue influenciar estilos não apenas diversos, mas que perpassam diferentes épocas.

E por falar em gênio da música pop, e por falar em Memphis, hoje, 16 de agosto, é aniversário da morte de Elvis Presley. Se é que morte tem aniversário, como diria meu amigo Pedro Geraldo!

domingo, 10 de agosto de 2008

Cotas - Parte 1 (o mérito)

O STF estará julgando em breve uma ADIN representada contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro. Por conta disso, foram apresentados àquela Corte dois manifestos assinados por nomes importantes da sociedade civil brasileira, um contrário ao sistema de cotas e outro favorável.

O documento anticotas intitulava-se “113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais” e conta entre os seus signatários com gente como Aguinaldo Silva, autor de telenovelas da Rede Globo, e Reinaldo Azevedo, jornalista da revista Veja. O texto é bem escrito, mas peca pela excessiva auto-indulgência. A todo momento lembrando o leitor de que não são racistas, os manifestantes mais parecem aquela personagem do conto Arranjo em branco e preto, da escritora norte-americana Dorothy Parker!

Do outro lado, o “Manifesto em Defesa da Justiça e Constitucionalidade das Cotas” é assinado por, entre outros, Oscar Niemeyer, pelo jurista Fábio Konder Comparato e pelo teatrólogo Augusto Boal. Apresentado no Supremo após a entrega do manifesto anticotas, o documento, mais do que uma defesa, é um contra-ataque aos argumentos apresentados pelos antagonistas.

Sem dúvida que é inquietante a celeuma provocada pela simples alusão às cotas nos concursos vestibulares. Inquietante e incompreensível. Afinal, o Brasil é, de forma geral, um país altamente tolerante com o sistema de cotas e reservas. Não se ouve falar de oposição organizada à reserva de vagas para portadores de deficiência física em concursos públicos. Tampouco se sabe de ações judiciais contra a obrigatoriedade de se assegurar um mínimo de candidatas mulheres por partido político (embora, nesse caso, o legislador tenha sido inteligente em não assegurar um mínimo de vagas para um dos sexos, mas antes evitar que qualquer um deles obtenha mais do que 70% das candidaturas, mas ninguém é ingênuo o suficiente a ponto de não perceber que, em última análise, a lei protege a mulher na política). Os anticotas tentam desqualificar os argumentos que usam tal analogia, mas não conseguem demonstrar claramente que eles não têm no mínimo a mesma raiz (por isso talvez a quase paranóica necessidade de ter de demonstrar que sua posição contrária às cotas para negros nos vestibulares não tem nada a ver com racismo).

O portador de deficiência por óbvio que depara com grandes dificuldades de entrar no mercado de trabalho, daí a “discriminação inversa” da reserva de vagas nos concursos para ingresso no setor público. E historicamente a mulher ficou relegada a um segundo plano no quadro político do país, sendo necessária alguma compensação que tente minimizar tal desequilíbrio. Mas tanto os portadores de deficiência quanto as mulheres precisam efetivamente participar dos respectivos processos seletivos ou de escolha a que se submetem, e independentemente de qualquer reserva de vagas, são obrigados a obter resultados mínimos ou apresentar características que estão enquadradas no já consagrado - ainda que discutível - princípio do mérito.

O mesmo se dá com a questão do negro na sociedade em geral e no campo escolar em particular. Os dados estatísticos comprovam - mas mesmo sem eles qualquer observação empírica denuncia - que a participação do negro na riqueza do Brasil e no universo escolar é desproporcional ao seu contingente geral no país. O sistema de cotas é apenas um pequeno passo na tentativa de se alterar tal realidade, a qual tem origem não somente nos árduos anos de escravidão, mas talvez principalmente na não-inserção do negro na sociedade brasileira pós-abolição. E a exemplo dos deficientes nos concursos públicos, e das mulheres nos partidos políticos, os negros beneficiários dos sistemas de cotas são obrigados a também ter desempenhos mínimos para ingressar nos cursos no número de vagas que lhes couber.

E por falar em mérito, vale recorrer a Peter Singer (ele de novo!), que no seu indispensável Ética Prática questiona por que apenas a inteligência é usada nos concursos de ingresso na universidade. O filósofo sustenta que outras qualidades ou características são também fundamentais para as mais diversas atividades e, portanto, poderiam ser usadas como critério de admissão de estudantes. Indo além, Singer alega que a seleção pelos testes de inteligência pode ser enquadrada no mesmo nível de qualquer outra utilizada pelos programas de “discriminação inversa”. Noutras palavras, se as universidades passassem a usar outro critério para fomentar seus programas de ação afirmativa em vez dos tradicionais testes que supostamente medem a inteligência, estariam apenas mudando sua política, e se isso trouxesse descontentamento, seria apenas a choradeira típica dos beneficiários do modelo anterior. Ainda sobre isso, o texto em defesa das cotas marca um de seus melhores tentos ao asseverar que “uma sociedade democrática sabe que o mérito deve ser um ponto de chegada e não um ponto de partida”. (grifo nosso)

Este post deve ser uma primeira parte sobre a questão das cotas. Talvez voltemos a discutir outros aspectos levantados nos dois bem lançados manifestos acerca do assunto.

Buddy Guy & Junior Wells - Live in Montreux (1978)

A bem-sucedida parceria do guitarrista Buddy Guy e do gaitista Junior Wells nasceu ainda no final dos anos 1950, portanto antes de eles lançarem discos como dupla: Wells já participara de antigas gravações de Buddy Guy cometidas no selo Chess no ano de 1960, com especial destaque às gravações de “Ten Years Gone” e de “I Got a Strange Feeling”; o guitarrista, por seu turno, acompanhara o gaitista no álbum Hoodoo Man Blues, lançado pela Delmark em 1965.

Efetivamente como dupla, propiciaram um dos melhores álbuns de blues de todos os tempos, o indispensável Buddy Guy & Junior Wells Play the Blues, de 1972. Seis anos depois, fizeram esta bem entrosada apresentação em Montreux, a qual resultou num disco que mais parece uma homenagem aos seus ídolos, haja vista as interpretações de dois clássicos do gaitista Sonny Boy Williamsom (o II) e as releituras de temas dos guitarristas Magic Sam, Freddie King e Guitar Slim.

Sem dúvida que vale a conferida. Mas se o amigo leitor conseguir encontrar o disco de 1972 certamente ficará mais feliz!

sábado, 9 de agosto de 2008

Quixote está de volta!

A peça Quixote está de volta aos palcos de São Paulo. A Cia dos Imaginários estará fazendo a releitura do clássico de Cervantes no Teatro Denoy de Oliveira, na Rua Rui Barbosa, 323, na Bela Vista, todos os sábados e domingos de 9 a 31 de agosto.

O autor destas maldigitadas teve a oportunidade de assistir à apresentação do original trabalho representado pela trupe em setembro de 2007. Naquela oportunidade ousamos escrever um texto para o blog Veritas sobre o belíssimo trabalho perpetrado pelo diretor René Piazentin e pelos atores Aline Baba, Kedma Franza, Octávio da Matta e outros. Reproduzo abaixo o texto, com algumas pequenas adaptações. Espero que ele ainda continue atual. Depois lhes confirmo.

Quixote
Talvez o leitor seja daqueles que só vão ao teatro – ou a uma apresentação de dança – quando algum amigo ou parente faz parte do espetáculo. Não raro a qualidade da apresentação é tão tocante que enseja a pergunta de por que não prestigiar tais tipos de evento com mais freqüência. Sim, caro leitor, antes que você inteligentemente o deduza, faço aqui o mea culpa: também estou entre os faltosos com essa forma de manifestação artística. Para ajudá-lo a tentar suprir essa lacuna, gostaria de humildemente recomendar que assista à peça Quixote, com a Cia. Dos Imaginários.

O objetivo da trupe, nas palavras do diretor René Piazentin, não foi o de fazer uma adaptação desse clássico da literatura universal, mas de “criar livremente a partir da figura central imagens que traduzissem um pouco do espírito de sonho, utopia, do desejo de vencer as barreiras que a realidade impõe para transformá-la (...)”.

O “cavaleiro de triste figura” de Cervantes foi expressão da nascente modernidade; o Quixote da Cia. dos Imaginários, por seu turno, é pós-moderno: ele depara com a velocidade dos dias atuais, é vítima da violência, entra no turbilhão da repetitividade e se deleita com a previsível sensualidade dos gestos – ou melhor, caras e bocas – do mundo da moda e do mercado do prazer. Se o “moderno” de certo modo questiona a existência e quer buscar respostas para si e para o mundo, o pós-moderno ou aceita tudo ou duvida das explicações. A despeito da pretensão do diretor, nem sempre – e me permito dizer infelizmente - o pós-moderno abre espaços para o sonho, tampouco luta pela transformação... Mas é claro, o atributo da pós-modernidade a este Quixote quem está concedendo, não sem certa arrogância, sou eu.

Seria muito bom ver a peça mais de uma vez. Afinal, a minha parca experiência com o teatro já me mostrou uma coisa: diferentemente do cinema, ao qual assistimos pelas lentes do diretor, o teatro o vemos por “nossos próprios olhos”, e enquanto fixamos a visão num ponto ou num detalhe, noutra ponta algo interessante ou revelador pode estar acontecendo, talvez com o mesmo peso dramático. Em suma, nossos olhos ficam pequenos para o tamanho do palco; nem sempre o são para o tamanho da tela. Por isso, se numa das apresentações nos ativermos a algum detalhe ou idéia, numa outra oportunidade podemos “mexer” mais nossos olhos, na busca de outros enfoques.

Já adianto, caro leitor, que não há no trabalho diálogos no sentido clássico. O bom ritmo da peça se deve, além evidentemente do excelente trabalho dos atores, à boa escolha da trilha musical: vai da eletrônica superpesada à melancolia das “Gymnopedies” de Erik Satie; do pop perfeito dos Beatles ao lirismo de um Jeff Buckley.

Mas tão singelas impressões fazem parte só de uma leitura. As leituras, é claro, podem ser várias. Essa parece ser, aliás, a idéia que a peça tenta passar na excelente tirada de se exibirem exemplares do livro abertos em páginas diferentes. Certamente cada qual na platéia olhou para um exemplar; fosse humanamente possível ler o que estava em cada uma daquelas páginas e ter-se-iam verdadeiramente diversas leituras. Ou será que o “livro aberto” era só uma metáfora para “algumas” vidas que há por aí? Não importa, são apenas leituras!

Não deixe de ver Quixote. Apareça por lá, mesmo que você não seja amigo ou parente da Kedma Franza, da Tatiana Teodoro, do Octávio da Matta, da Aline Baba, da... Ah, não se esqueça de que não é preciso estar sobre a colina para ver o sol se pôr, ou para ver o mundo girar...!

Pharoah Sanders: Black Unity (1972)

O saxofonista Pharoah Sanders é devoto das longas improvisações, repletas de percussões com forte acento africano, além de alguns lampejos de orientalismo. A sua obra sofre inegavelmente a influência dos trabalhos mais vanguardistas de John Coltrane, especialmente daqueles ditos mais “espiritualizados”, meditativos ou contemplativos. Não por acaso Sanders acompanhava Coltrane circa 1965, estando presente nos shows de free jazz incontido que resultariam no álbum Live in Seattle. Ah! Se alguém também pensar em Albert Ayler, não estará cometendo nenhum desvario.

Tanto Coltrane quanto Ayler estavam mortos quando do lançamento deste Black Unity, em 1972. Talvez seja o caso de dizer que o álbum é uma espécie de seguimento do legado deixado pelos dois inquietos saxofonistas. Ao contrário do que se poderia pensar, a tal unidade apregoada pelo título do disco e de sua única canção de 37 minutos não é de conteúdo político, pelo menos não unicamente. Sanders está pensando também no sentimento de se estar junto, tanto das pessoas entre si como delas com o mundo e com o seu Criador. E é a música que tem a capacidade de expressar a necessidade e a possibilidade de tal união.

Desligando-se das idéias e centrando-se na parte meramente musical, deve-se recomendar este disco para os fãs de jazz avant-garde em geral, mas particularmente para os aficionados por contrabaixo: o já experiente Cecil McBee dividia as glórias com um então novato chamado Stanley Clarke. Quer mais? E tem mais! Embora pareça impossível, Black Unity consegue a proeza de ir além daqueles elementos expostos com verdadeira mestria no também imperdível Karma, de 1969.

domingo, 3 de agosto de 2008

Bossa Nova

Neste clima dos 50 anos da Bossa Nova, o meu amigo Eduardo “sallamanka” criou uma lista no site RateYourMusic com uma espécie de ranking do gênero, a partir da escolha de alguns usuários do excelente sítio musical. Exortado por nosso outro amigo Gustavo “jared_lethal”, o “sallamanka” pediu-me que eu também indicasse meus três discos preferidos do gênero.

A escolha, feita meio que às pressas, pode a qualquer momento ser revista. E, convenhamos, de fato não é nada fácil. Tive duas preocupações. A primeira foi a delimitação do gênero: tenho especial predileção pelo chamado Samba-Jazz, que é um desdobramento da Bossa Nova, mas dotado de características muito peculiares, que lhe justificam outro tipo de categorização, o que me fez tentar evitar incluir discos mais afeitos a esta categoria. A segunda foi a vontade de fugir do óbvio, mas com a certeza de que isso seria impossível: João Gilberto ou Tom Jobim teria que, indefectivelmente, ser uma das escolhas, restando saber qual trabalho deles seria a um só tempo ilustrativo e diferente no contexto que pretendemos enfocar.

As escolhas foram: Tom Jobim, The Composer of Desafinado, Plays, ou, conforme o lançamento brasileiro da Elenco, apenas Antônio Carlos Jobim; os outros dois, para evitar, repitamos, a obviedade (pero no mucho!), foram o Eu e a Brisa, de Johnny Alf, e O Compositor e o Cantor, de Marcos Valle.


Tom
A opção pelo disco de Tom, em vez de algum trabalho de João Gilberto, se deu como forma de homenagear a bossa instrumental, ainda mais que é o “pai das crianças” in person que as está acalentando no sensacional disco de 1963. Gravado em Nova York, o álbum conta com músicos brasileiros e americanos. O brasileiro identificado é o espetacular baterista Edison Machado. E ele contribui massivamente para percebermos alguma diferença entre a Bossa Nova e o Samba-Jazz: no álbum de Tom sua bateria é leve, simples, de balanço suave; mas se ouvirmos Edison no seu disco solo do mesmo ano, ou no Bossa Rio de Sérgio Mendes, ou no Rio 65 Trio teremos um batera pesado, com forte marcação, tonitruante, de verve jazzística na linha de um Max Roach ou de um Elvin Jones. Em suma, The Composer of Desafinado, Plays, ou Antônio Carlos Jobim é um grande disco para quem quer entender o que é realmente Bossa Nova.


Alf
Eu e a Brisa
foi um título dado a posteriori. Em verdade, o disco de Johnny Alf foi inicialmente conhecido como o álbum “com arranjos de José Briamonte”. A escolha deste trabalho talvez tenha sido uma forma indireta – ou inconsciente – que encontrei para homenagear João Gilberto, afinal Alf também está naquela linhagem dos cantores de voz relativamente frágil, do tipo que tem de agradecer ao João pelo caminho que o baiano, provavelmente inspirado em Chet Baker, ajudou a abrir para os brasileiros anti-Francisco Alves, tendência aliás que viria para ficar. Há, entretanto, quem diga que Johnny Alf gravara, alguns anos antes de Chega de Saudade, um 78 rotações que já apresentava algumas características “bossanovísticas”, suportadas pelo seu estilo ultracool de cantar, o que o teria feito a antecipar-se, desse modo, ao mito João Gilberto. As belas canções deste disco, na voz intimista de Alf, formam um belo retrato da revolução que a Bossa Nova representou no jeito de cantar. E tal levante, Eu e a Brisa comprova, não foi capitaneado somente pelo João.


Marcos
O Compositor e o Cantor
, de Marcos Valle, é outro daqueles discos representativos da universalidade da Bossa Nova, haja vista a presença de valsa, baladas e um pouco de jazz temperando a levada tão claramente brasileira do álbum. A sucessão de clássicos desta obra inclui “Preciso Aprender a Ser Só”, “Samba de Verão” (a rival de “Garota de Ipanema” em nível internacional) e “A Resposta”. E a linguagem deste clássico de 1965 é jovem, quase pop, ainda mais que tem a orquestração de ninguém menos do que Eumir Deodato. A identificação musical de Marcos e Eumir já é abençoada por Paulo Sérgio Valle, nas notas de contracapa de O Compositor e o Cantor. Os dois músicos cariocas viriam a se afastar gradativamente da Bossa, rumo a uma modernidade mais desabrida: Marcos num contexto mais próprio da MPB misturada ao Rock, Soul e pop; Eumir numa linha mais fusion, Jazz-Rock etc. Além do compositor e cantor, havia neste disco o “arranjador” e o “irmão parceiro”. Por isso, ele é grande!

Eis a explicação para minhas três escolhas. Como se pode ver, trata-se de idiossincrasia pura. Vale a pena uma conferida na lista para saber o que o pessoal por lá mais gosta em termos de Bossa Nova e, quem sabe, usá-la como um roteiro para futuras aquisições.

sábado, 2 de agosto de 2008

A "superestrutura" de Doha

Falou-se muito durante a semana sobre a “Rodada de Doha”. As reuniões terminaram sem acordos considerados importantes para o comércio internacional. Muito se disse a respeito de quem supostamente ganhou e de quem provavelmente perdeu; conjeturou-se acerca da prevalência da importância da OMC; especialistas defenderam a atuação da diplomacia brasileira, enquanto outros a condenaram; opiniões divergentes se apresentaram quanto às futuras estratégias de países ricos e emergentes no cenário que se desenha a partir dos resultados práticos da Rodada.

Mas há um elemento muito forte na Rodada (porém muito longe de ser somente nela) que passa bem ao largo das discussões sobre o assunto. Refiro-me ao Estado como um ente reduzido a gerente de interesses de classe.

A cidade de Doha estava repleta de ministros e de funcionários públicos representantes de vários países e de blocos com poderes de Estado. Mas as discussões lá buscavam resultados e propostas que, em última instância, visam apenas aos interesses privados dentro da lógica capitalista, com vistas ao lucro e à acumulação de capital que favorecerão pequenos grupos.

E vem sendo assim de há muito. É só o que se vê nas peregrinações internacionais da maioria dos chefes de Estado. Presidentes e ministros, quando se dirigem a outros países, vão rodeado de empresários, muitos deles seus inimigos figadais declarados no campo político, e a maior parte de seus compromissos são com empresários ou entidades representativas de patronatos locais. Chefes de Estado – e de Governo também – quando vão cumprir agenda internacional agem como executivos de grandes empresas.

Não há dúvida que a dose hoje em dia é maior, e que o mascaramento nem precisa ser tão eficiente, mas a grande verdade é que, sob o capitalismo, a coisa sempre se deu mais ou menos dessa forma. Trata-se da ideologia tal como descrita por Karl Marx; ou tem a ver, de forma mais aprofundada, com o que se chama “superestrutura”. Diz o pensador alemão, em trecho clássico: “(...). A totalidade destas relações de produção (forças produtivas materiais) forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma 'superestrutura' jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Para a crítica da economia política, in col. Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1991; pp. 29-30,). Ainda sobre superestrutura, o pensador alemão lançou também estas palavras importantes: “(...). Sobre as diversas formas de propriedade e sobre as condições sociais de existência se levanta toda uma 'superestrutura' de sentimentos, ilusões, modos de pensar e concepções de vida diversos e formados de um modo peculiar. A classe inteira os cria e os forma derivando-os de suas bases materiais e das relações sociais correspondentes” (El Dieciocho Brumario de Luis Bonaparte, Moscou: Editorial Progreso, s/d, p. 35).

Se a questão fosse ao menos debatida, certamente que se veriam pessoas dizendo que está tudo muito bem, os governos devem realmente realizar tal papel, pois o comércio internacional precisa ser superavitário, afinal os países precisam de reservas, não podem ficar vulneráveis a crises internacionais etc. Ora, mas isso é exatamente o que o velho Marx diz e é o que ele chama de superestrutura e de ideologia. São as coisas devidamente mascaradas parecendo que são naturais. Muitos diriam também que tudo é para o bem da maioria da população, ou seja, daqueles que dependem de emprego e de uma situação de tranqüilidade e paz social para sobreviver. Mas isso nada mais seria do que a famosa inversão da chamada ideologia burguesa. Não raro se ouve amiúde que o capitalismo é o sistema mais natural porque está ligado a algumas das características mais marcantes do ser humano, tais quais o egoísmo, a insaciabilidade dos desejos, a inquietude etc. Noutras palavras, o capitalismo é hegemônico porque estamos sempre querendo melhorar de vida, trocar de carro, comprar aparelhos mais modernos. Porém, em verdade ocorre o contrário: a superestrutura que se agiganta acima do modelo econômico é que reproduz o modus vivendi mais afeito ao sistema. Ou seja, o capitalismo não se justifica pelo nosso desejo de ter um celular cada vez mais novo; antes queremos ter um telefone móvel atrás do outro porque vivemos numa sociedade capitalista!

Não se lê sobre isso nos jornais, nem se ouvem as pessoas discutindo tal tema no dia-a-dia. Mesmo nos meios acadêmicos, parece que assuntos que envolvem discussões sobre o modelo econômico e sobre a ideologia que lhe vem a reboque estão superados. É por isso que, ao se falar da Rodada de Doha, observam-se seus desdobramentos práticos, mas não se adentra ao significado de questões como comércio enquanto corolário das relações sociais de classe, globalização da ordem econômica, o poder político sobrepujado pela força econômica etc.

E sigamos em frente na era dos políticos caixeiros-viajantes, empregados de conglomerados econômicos.