sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Eu não sou cachorro, não (CD) - 2004

“Trilha sonora de livro” soa muito estranho. Mas é exatamente o que temos aqui: uma coleção de músicas populares cafonas dos anos 1970 que servem de fundo para a leitura do livro Eu não sou cachorro, não, de Paulo Cesar de Araújo, selecionadas pelo próprio autor.

A idéia foi mostrar o quanto os artistas extremamente populares (popularescos mesmo, exemplos do mau gosto, numa palavra, os bregas) trouxeram de desconforto para o establishment político dos anos de chumbo e como chocaram o “bom gosto” elitista da classe média e dos intelectuais da “porção Bélgica” da “Belíndia”.

Que alguns figurões do primeiro escalão da MPB incomodaram os militares ou usaram metáforas assaz criativas para despistar a censura todo mundo sabe. Mas é desconcertante descobrir que nomes como, por exemplo, Waldick Soriano e Odair José tenham trazido alguma dor de cabeça para as autoridades do período mais duro do regime militar. É a este propósito que a excelente coletânea serve.

O recentemente falecido Waldick Soriano aparece com a clássica canção que dá título ao livro e à presente compilação e também com “Tortura de Amor”, música que o baiano lançara em 1962 e que viria a regravar em 1974. Se no início dos anos 1960 ela não causou maiores transtornos, já no meado dos anos 1970 teve sua execução proibida em todo o território nacional, simplesmente por conta da palavra “tortura”, vocábulo que não caía bem adentrar o recôndito dos lares brasileiros ou tomar as ruas deste continental país àquela época. Já o megahit romântico “Eu Não Sou Cachorro Não”, analisada em retrospecto, também serve, segundo Paulo Cesar, como uma espécie de hino para os pobres vituperados pelas autoridades e pelo sistema, um canto que ecoava de Norte a Sul do país, na boca do mesmo povo que candidamente esperava o bolo crescer.

A obra do goiano Odair José também sentiu a lâmina afiada da tesoura naqueles “anos de exceção”. Só para começar, basta dizer que a faixa “Em Qualquer Lugar”, de 1973, só veio ganhar a luz justamente nesta coletânea, depois de mais de 30 anos, censurada que foi na época por sua suposta conotação sexual, assunto que era pouco recomendável naquele clima de moralismo próprio das ditaduras. Por outro lado, a canção “Viagem” conseguiu, depois de recurso, ser liberada pela censura, não obstante sua letra escancaradamente apologética ao uso de maconha. A sorte de “Uma Vida Só” (Pare de Tomar a Pílula) só foi mudada depois de a música estar nos primeiros lugares da parada. Diferentemente do que muitos hoje pensam, ela não foi banida por causa da referência à pílula, mas, ao contrário, ela o foi justamente porque o uso de anticoncepcionais vinha sendo recomendado por maciças campanhas governamentais, e a singela canção de Odair poderia ser entendida como uma conclamação à desobediência civil! O polêmico artista encerra a presente coleção com “Vou Tirar Você Desse Lugar”, ao lado do intragável Caetano Veloso, na famosa apresentação do evento Phono 73, realizado em São Paulo naquele ano. Mostrando que não é de hoje que o insuportável cantor e compositor baiano é dado a fazer demagogia, ele convidou Odair José para dividir o palco com ele. Mas isso, segundo Paulo Cesar de Araújo, só depois de Hermeto Pascoal ter recusado tão “inestimável honra”...

Outros temas de caráter social presentes no CD são: “Garoto de Rua”, do obscuro cantor Balthazar, que trata do tema da infância abandonada, composta em... (não, não é no final dos anos 1980, início dos 90, não), composta em 1976; o brega-soul(!) “Eu Queria Ser Negro”, de Marcus Pitter, falava da segregação e dava um tiro certo no mito da democracia racial, com direito a um refrão pegajoso que por muito pouco não é um plágio da versão de Wilson Pickett para “Land of Thousand Dances”, de Chris Kenner; “Você Também É Responsável”, com a dupla “chapa-branca” Dom e Ravel, é uma tremenda curiosidade: canção que foi feita para ser uma espécie de hino do Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, acabou chamando atenção demais para a questão das desigualdades sociais e das agruras da população pobre, a ponto de lhes ser solicitado que mudassem a letra, sugestão que, felizmente, não foi acolhida pelos cearenses.

Outros destaques da coletânea: o ídolo Paulo Sérgio, em pleno 1970, ano do tri, clima de “ninguém segura este país”, afirmava, com seu jeito apaixonado de cantar, que queria dar um fim em tudo, na ultra-romântica (aqui num sentido mais “Álvares de Azevedo” do termo) “Não Creio em Mais Nada”, canção tributária do estilo jovem guarda, porém sem a puerilidade das letras daquele gênero, isso sem falar do órgão intermitente que evocava – olha a heresia aí – um Strawberry Alarm Clock ou um ? & the Mysterians. O controverso Agnaldo Timóteo também causa espécie com “A Galeria do Amor”, música em homenagem à famosa Galeria Alaska, então um reduto de homossexuais no Rio de Janeiro, que bem mereceria entrar naquelas listas de melhores canções gays de todos os tempos, ainda mais por seu estilão, digamos, kitsch de ser!

Por fim, o sambão-jóia “Retalhos de Cetim”, de Benito di Paula, e “Brasileiro no Meu Calor”, de Sidney Magal, aqui apenas ocupam espaço, como mera curiosidade, um tanto fora do contexto do álbum. (Magal, aliás, ao lado de Caetano Veloso, é sem dúvida a presença mais desagradável do disco). Como último destaque, vale mencionar a inclusão de um dos maiores sucessos do redivivo Evaldo Braga. O cantor de voz potente, morto em pleno auge com 25 anos, está tendo um de seus maiores sucessos utilizado por campanha de um candidato à Prefeitura de São Paulo neste ano de 2008. Mas nesta compilação, em vez de “Sorria”, temos a também notável “A Cruz que Carrego”. Não chega a ser uma maravilha, mas minha mãe gosta muito dele, por isso, em homenagem a ela, vou aqui manifestar o meu respeito ao “ídolo negro”. Boa leitura; boa audição!

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