sábado, 28 de fevereiro de 2009

Os estados mentais de Benevides e Comparato

Deu pano para manga a “ditabranda” da Folha de São Paulo. Referindo-se ao regime militar brasileiro, o jornalão usou a estranha expressão num editorial sobre a Venezuela, colocando-se, assim, no centro de apaixonada polêmica - o que talvez tenha sido mesmo o objetivo de seus responsáveis, haja vista que o diário paulistano sempre foi dado a fazer de si mesmo a notícia e o centro das atenções.

Como seria de se esperar, houve várias manifestações de leitores, muitas devidamente publicadas na seção de cartas. Dentre os missivistas estavam os professores da USP Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, ambos críticos ao termo utilizado pela Folha. O jornal respondeu aos manifestantes da seguinte maneira: “Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa”.

Acerca da falta de cordialidade devida a todos os leitores – figuras públicas ou não – o ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, ainda que laconicamente, tratou na sua coluna de domingo 22 de fevereiro. Diversas outras críticas e análises pulularam durante a semana. Certos aspectos mais sutis, no entanto, foram ignorados.

Acusar Benevides e Comparato de cínicos em relação a esse caso é algo aceitável, mesmo quando disso se discorde, pois é uma proposição dotada do mínimo de plausibilidade lógica. Afinal, de acordo com a ingenuidade linear da Folha e daqueles que com ela concordam, se se aceita candidamente o regime cubano, muitas vezes acusado de ditatorial, não há sentido reagir tão prontamente à associação da idéia de brandura com os anos de chumbo no Brasil. Está-se, é claro, usando a idéia de cinismo na sua acepção popular, qual seja, de descaramento e de desfaçatez. Neste caso, pois – devem pensar os editores do diário -, os professores da USP estariam usando pesos e medidas diferentes para situações similares ou estariam puxando a brasa para a sardinha de que gostam, enquanto demonstram intolerância com uma situação pela qual antipatizam – questão meramente ideológica, portanto. Ainda que provida de lógica a acusação, o jornal não percebeu, porém, que a sua resposta parece ter dado razão aos críticos, pois a sua referência a Cuba como efeito de comparação, com a afirmação de que lá vigora uma ditadura, de certo modo admite que a utilização do termo “ditabranda” pode ter sido despropositada. Afinal, na nota o jornal não defendeu a utilização da curiosa palavra e, ainda que implicitamente, admitiu que o nome que melhor define o que houve aqui no Brasil durante o período militar é, sim, com efeito, “ditadura”, vocábulo usado para se referir ao governo cubano!

E quanto a chamá-los de mentirosos? Neste ponto a coisa se complica de vez para “o maior jornal do país”. O fato de ser o maior não lhe dá o direito de afirmar que alguém mente, a não ser que amparado em fatos concretos. No caso em tela, o que se discute é apenas um sentimento individual: a indignação. Seria necessário ter acesso privilegiado aos estados mentais dos sujeitos Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides para se afirmar, de forma tão peremptória, que a indignação deles é mentirosa. Noutras palavras, se alguém se declara indignado com algo, temos a obrigação de acreditar no que diz, haja vista que a suposta indignação está sendo sentida por ele. É possível, talvez, que num viés “wittgensteiniano” se possa objetar com a alegação de que fatos mostram que a indignação não é verdadeira. Tal fato, poderia dizer o pessoal da Folha, seria a revolta dos professores com as ditaduras de direita e a sua condescendência com as de esquerda. Mas esse é o tema do parágrafo anterior. Caso queira, que se chame tal sentimento de cínico, incoerente, hipócrita; de mentiroso, não! Repitamos, pode haver aí um problema de ideologia. E o “sentimento” (frisemos bem a palavra) vai variar de acordo com o gosto (ideológico) do freguês. Somente o Fábio e a Maria Victoria poderiam dizer que mentiram quando se manifestaram com indignação. Para uma pessoa dizer que a indignação alheia é mentirosa, ou seja, afirmar que dado sujeito se diz indignado quando em verdade não está, só seria possível se ela tivesse o poder de ter acesso aos estados mentais dele (Que se saiba, a Folha também não tem tal poder. Ainda!). Ou, quem sabe, os editores do principal jornal paulistano sejam muito dados a mentir quando se dizem indignados, de modo que sejam capazes de perceber – e de certa forma entrever – a mentira por trás da indignação – o que provavelmente seria, mais uma vez, um recurso “wittgeinsteiniano”.


P.S. As referências indiretas ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foram utilizadas com alguma irresponsabilidade, haja vista que este escriba não se sente (ou pelo menos não deveria se sentir) muito seguro de recorrer a este grande nome do pensamento do século XX. De qualquer forma, acreditamos que isso não chega a comprometer o texto, o qual, aliás, deve estar eivado de outros defeitos potencialmente mais graves.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O reconhecimento internacional de nossa imprensa

No polêmico caso envolvendo advogada brasileira na Suíça há um aspecto que deveria ter sido mais bem analisado pelos interessados no assunto, mas que foi ocultado, principalmente na grande imprensa – aliás, por motivos óbvios, o leitor logo o verá. (verdade seja dita, porém, o blog Cidadania.com não deixou de anotar o elemento que será aqui explorado).

Numa de suas primeiras reações, a imprensa do país europeu criticou duramente as autoridades brasileiras por sua precipitação, mas foi especialmente enfática em apontar o que se pode chamar de mau-caratismo da mídia brasileira, que, segundo ela, é dada a mentir, a inventar coisas, a destruir reputações, a cometer injustiças de toda espécie.

Antes de prosseguirmos, uma questão: há muita gente aí que se oporia a essas assertivas dos suíços em relação aos meios de comunicação de nosso país?

A imprensa brasileira sempre embarcou com muita facilidade em canoas furadas. Esqueça-se da Escola Base, amigo leitor, caso emblemático da pressa e da falta de diligência dos meios de comunicação brasileiros. Pense noutros: Alceni Guerra, Freud Godoy, caso da mãe que teria colocado droga na mamadeira, caso Júlio Lancelotti, a história do escrevente que teria matado os pais em São Paulo etc.

Aparentemente a mídia se recusa a refletir sobre seus erros. Ela deveria ver no “desabafo” de seus pares suíços mais um motivo para repensar sua situação e seu modo de agir nos últimos tempos. A coisa anda tão feia para o lado dos meios de comunicação no Brasil, que, de poucos anos para cá, todos se sentem relativamente à vontade para tratá-los como saco de pancada - nalgumas oportunidades com a mais pura razão, noutras com alguma dose de cinismo. Vejamos alguns casos.

Quem não se lembra de texto do filósofo Mangabeira Unger na Folha de São Paulo acusando o governo Lula de ser o mais corrupto do Brasil republicano? No entanto, ao aceitar cargo no mesmo governo, o descarado intelectual saiu-se com a desculpa de que somente fizera aquelas declarações porque havia sido mal informado pela imprensa brasileira. Como bem lembrou Alberto Dines, em interessante texto publicado no Observatório da Imprensa, Mangabeira colocou a Folha, jornal do qual era colunista, em má situação, pois não dava para imaginar que o professor, então morador dos Estados Unidos, fosse buscar notícias sobre o Brasil na concorrência. A pergunta básica é: o hoje secretário com status de ministro do governo Lula teria coragem de arriscar tão absurda saída olímpica se sentisse que a imprensa gozava de um mínimo de prestígio entre a população brasileira? Certamente não. Mangabeira, para tornar menos cínico o seu ingresso no governo que criticara da mais dura maneira imaginável, aproveitou-se, em verdade, da absoluta antipatia que a mídia já vinha provocando em boa parte da opinião pública.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também não deixa de dar suas cutucadas na imprensa de quando em vez. Há algum tempo provocou a ira de colunistas, sugerindo que a imprensa era culpada de boa dose da violência que se verificava no país, por conta da sua opção preferencial por notícia ruim e por desgraças de toda magnitude. Recentemente, na famigerada entrevista à revista Piauí, o presidente brasileiro chegou a antecipar o teor da bronca publicada na imprensa suíça. Disse ele: “a única coisa que eu lamento profundamente é que quando acontece a publicação de uma mentira, quando vem à tona que aquilo era mentira, não seja publicado do mesmo tamanho o desmentido. (...)Quando você é condenado, você já foi condenado previamente. Quando você é absolvido, isso não aparece ”. Num país em que a imprensa fosse respeitada, o chefe de Estado teria que pisar em ovos ao dar tais tipos de declaração, mesmo sendo elas a mais absoluta verdade.

Mediante tais exemplos, é de se estranhar que a imprensa brasileira seja incapaz de fazer o mínimo de autocrítica e de ser mais cuidadosa com os seus métodos. E o caso Paula ajuda a mostrar que o problema não é de má vontade por parte de políticos magoados com críticas ou de protoditadores que querem silenciar a liberdade de expressão. Dessa vez ficou demonstrado que a má qualidade do jornalismo praticado no Brasil já conquistou fama internacional. Certamente, os suíços não disseram o que disseram da nossa mídia por acaso.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Edmar Moreira (ex-DEM); DEM (ex-PFL)

A falta de tempo para atualizar os posts do blog nos obriga a falar de temas que, por conta da urgência do noticiário, já parecem ultrapassados. Tem-se como aspecto positivo, entretanto, o fato de se poder refletir melhor sobre dado assunto ou se poder comentar sobre seus desdobramentos.

O caso do deputado do castelo, Edmar Moreira (agora sem partido), é desses que, de tanto que se falou e se escreveu sobre ele, parece já desprovido de interesse e devidamente superado por conta da prodigalidade de análises publicadas.

Mas houve aspectos dele que não podem ser negligenciados.

Antes de mais, cabe reiterar observação de um amigo, presente também em ótima análise de Luiz Antonio Magalhães, publicada no Observatório da Imprensa: se o simpático deputado não tivesse ficado com a vice-presidência e a corregedoria da Câmara dos Deputados, ou seja, se não tivesse se posicionado debaixo dos holofotes, certamente continuaria nas boas no seu próprio partido e dentro da Casa. Afinal, a propriedade do bonito castelo já havia sido motivo de reportagem da revista Veja há dez anos, antes mesmo de seu ingresso no então Partido da Frente Liberal, hoje Democratas, sem aparentemente ter causado maiores consternações.

Mas o mais interessante mesmo foi, só para variar um pouco, o comportamento no mínimo ambíguo da imprensa no episódio. Logo que se começou a falar no assunto, pescando uma informação aqui outra ali, ficou patente o fato de que não havia grande vontade de revelar o partido a que pertencia o deputado mineiro. Tive, de cara, apenas uma certeza: o senhor feudal certamente não era do PT ou de qualquer outro partido de esquerda, tampouco teria algum tipo de ligação com o presidente Lula! Se fosse ou se tivesse, e certamente teríamos visto manchetes do tipo “deputado petista é dono de castelo”, “castelo de deputado do PT é avaliado em zilhões”, “petista não declarou castelo à Receita”, “DEM e PSDB vão pedir cassação de deputado, tio de Lula, dono de castelo”. Exagero? Basta o leitor lembrar-se de episódios recentes: “mensalão do PT” x “mensalão ‘mineiro’ (em vez de tucano)”; apreensão de dinheiro de petistas para compra de dossiê contra Serra; em vez de Genival, “o irmão de Lula”; Silas Rondeau, uma vez encrencado, era “ministro de Lula”; Roberto Teixeira, o “compadre de Lula” etc.

Sempre que assuntos como reforma política vêm à tona, os analistas são unânimes em apontar a importância dos partidos. No caso de Edmar Moreira, porém, ficou parecendo que a agremiação que o abrigava era de somenos importância. Não há dúvida que a imprensa quis preservar o DEM, partido do prefeito Gilberto Kassab, dos senadores Heráclito Fortes, Demóstenes Torres e José Agripino Maia, sigla coligada do PSDB na gestão FHC, também aliada dos tucanos nas derrotadas candidaturas de Serra e Alckmin. Nesse caso talvez tenha ocorrido o repeteco de hipocrisia observada quando do surgimento de escândalos dos primeiros anos do governo Lula. Lia-se em fóruns da internet, ouvia-se da boca do povo e depreendia-se de certas análises que escândalos como o do “mensalão” eram especialmente graves por envolver o PT: diziam eles que o Partido dos Trabalhadores havia sempre falado muito de ética, o que tornava inadmissíves os seus desvios. Ora, deduz-se de tal assertiva que se um partido não empunhar tal bandeira fica desobrigado de certos compromissos morais. Daí talvez a despreocupação com o fato de Edmar Moreira estar abrigado no importante partido oposicionista.

Mas o DEM não perdeu tempo e já expulsou o cavaleiro medieval de suas fileiras. Belíssimo gesto, sem dúvida. Pena que, como bem disse o já citado Luiz Antonio Magalhães, fique parecendo pose de virgem no bordel. Se o castelo não foi problema para o político mineiro ingressar no partido, por que é motivo para expurgá-lo agora?

Vimos no caso, pois, hipocrisia da imprensa e dos políticos. Sinal de que as coisas não mudam... E os blogs, com ou sem atraso, se repetem nas suas análises.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Tô com medo!

Numa das cenas mais patéticas da história recente do país, a atriz Regina Duarte admitiu que tinha medo da eventual eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, quando o ex-metalúrgico enfrentava o hoje governador José Serra. Nunca pensei que eu representaria tão ridículo papel, até porque não tenho e nem faço questão de ter o “talento” daquela que já foi “namoradinha do Brasil”, mas a verdade é que devo admitir, caro leitor, que tenho medo do que possa ocorrer com o próximo presidente do país. É isso aí: agora, eu é que estou com medo!

A situação não será nada fácil para Dilma Roussef, para o já citado José Serra ou para quem quer que seja o próximo ocupante do Planalto. O presidente Lula caminha a passos largos para se consolidar como um mito de nossa era, como a figura política mais importante de nossa história. E isso, infelizmente, não é algo que se possa considerar muito bom. O sucessor do petista terá dificuldades de se projetar como um pós-Lula ou, se for o caso, como o seguidor da figura mítica.

Estou, evidentemente, pensando na espetacular popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva, confirmada pela pesquisa CNT/Sensus, divulgada na terça-feira (04-02-2009). Sinceramente acreditava que o presidente já havia atingido seu limite. Imaginava também que, nessa pesquisa, ele cairia um pouco, talvez dentro da margem de erro, mas o suficiente para fazer a alegria da “imprensa festiva”. Mas não, o homem subiu!

Há, além do mais, outra informação bastante relevante (e assustadora), sutilmente escondida pela grande mídia: na sondagem para 2010, nas respostas espontâneas, o desejo da maioria é que fosse eleito presidente ninguém menos do que... Lula. Isso mesmo, caro leitor! Lula não pode se candidatar a mais um mandato consecutivo, mas mesmo assim, na pesquisa espontânea, ou seja, aquela em que a pessoa simplesmente responde sem lista de nomes em quem votaria se a eleição fosse hoje, Lula ganharia com o dobro dos votos de José Serra, líder da mesma pesquisa na sua forma estimulada.

Tenho medo, pois, da sombra que pairará sobre a cabeça do sucessor do presidente Lula. Como poderá o sucessor se sobrepor a uma figura que consegue, contra a mídia, contra os poderosos, num ambiente de crise, manter-se em tão elevado índice de popularidade?

A liderança de Lula conseguiu, ainda que aos trancos e barrancos, unir o PT, o que não é pouca coisa, e tem conseguido deixar acuada uma oposição que lhe poderia ser mais radical. Observemos que mesmo os candidatíssimos Serra e Aécio não encontram facilidades em se mostrar como anti-Lula. Parece que esse não será o caminho abraçado pelos dois, a menos que a crise econômico-financeira recrudesça muito por aqui. (Daí talvez todo o terrorismo midiático).

O próximo presidente necessitará de habilidade e terá que contar com alguma sorte, caso contrário, e a despeito da aparente estabilidade de nossa democracia, talvez surja algum movimento do tipo “Volta, Lula”!

Interessante notar que, vendo por esse lado, apesar da extraordinária crise nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama parece estar em melhores lençóis do que tenderá a estar o próximo mandatário do Brasil, sobretudo se a coisa não ficar muito feia por aqui. Paradoxal, não?

Dois discos, duas críticas

The Persuaders - Thin Line Between Love and Hate (1971)


Discos como este nos fazem entender a importância que o velho e bom compacto teve especialmente nas décadas de 1960 e 1970, e notadamente na soul music. A faixa-título, single de grande vendagem em 1971, vale cada centavo pago no elepê. Pode-se dizer, portanto, que, se em vez do “bolachão”, o discófilo encontrar apenas o “7 polegadas”, pode pegar, ainda que o preço lhe pareça salgado para apenas duas músicas.

E não pense que no geral seja um disco ruim. Ao contrário, no todo é bastante respeitável. Mas “Thin Line Between Love and Hate”, a canção, está muito acima dos demais temas do álbum e - talvez não seja exagero dizer - merece estar no panteão das melhores canções pop de todos os tempos. Tema inspirado, a música teve boa releitura dos Pretenders no álbum Middle of the Road e uma horrível, absolutamente esquecível, de Annie Lennox.

A soul music, no mais, está cheia de exemplos assim, ou seja, artistas com algum número absolutamente transcendental em meio a trabalhos que, embora dignos, são desprovidos de brilho mais duradouro. Pode-se citar de sopetão Brenton Wood e a sua acachapante “Gimme Little Sign”, Deon Jackson e a notável “Love Makes the World Go Round” e, por fim, a belíssima “What Does it Take (To Win Your Love for Me)”, de Jr. Walker & All Stars.




Jimmy Smith - The Sermon! (1959)

The Sermon!, do organista Jimmy Smith, foi concebido para o formato de LP mesmo, com suas longas três faixas que perfazem um total de mais de quarenta minutos de jazz num estilo bluesy. Chamá-lo de disco conceitual seria um tanto anacrônico, mas é assim que ele soa, com sua coesão e regramento na maneira de se improvisar e solar. Atenção: regra aqui não significa limite, mas, sim, o modo que os temas se desenvolvem. Afinal, trata-se de um “sermão”, e dessa maneira precisa soar, já diz o radialista Daniel Daibem, como se se estivesse discursando, ou contando uma história, enfim, dizendo algo.

E os “pregadores” presentes aqui matam de inveja qualquer instituição religiosa que se imagine, com destaque ao subestimado saxofonista Tina Brooks e ao guitarrista Kenny Burrell.

Aos interessados, outros discos irretocavelmente coesos de Jimmy Smith: The Cat (1964) e Monster (1965), pelo menos.

Quixote outra vez

A peça Quixote, com a Cia. dos Imaginários, está em cartaz no Centro Cultural São Paulo desde 13 de janeiro e por lá ficará até 19 de fevereiro, sempre de terça a quinta, às 21h. Quem já teve oportunidade de assistir ao espetáculo deve tornar a fazê-lo.

Cada apresentação no teatro tem, para usarmos – ainda que imprecisamente - expressão de Walter Benjamin, o seu hic et nunc, de modo que a percepção do espectador pode variar de noite para noite. No seu A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, o pensador alemão lembra que no teatro o ator apresenta sem a intermediação técnica que forçosamente existe no caso do cinema, por exemplo. Neste sentido, a apresentação teatral tem aquela coisa única da obra de arte que o autor denomina “aura”. Daí não ser nada de mais o amigo leitor rever, mesmo que seja pela terceira ou quarta vez, a ótima peça dirigida por René Piazentin.

Mas a comparação com o cinema talvez não se sustente no caso de Quixote, antes merecendo aproximação a uma categoria menos nobre: o videoclipe. Por ser a música um elemento fundamental da performance dos Imaginários, talvez não seja das maiores forçadas de barra dizer que há, de fato, correlação com os clipes musicais. Nalguns momentos, a expressão corporal dos atores dá até mesmo a idéia de que tudo não passa de uma grande coreografia. Em todo caso, vale lembrar, aqui é mera opinião de leigo!

Nesses tempos de interatividade, chega a ser irresistível fazer uma intervenção imaginária (ops!) na peça: Quixote poderia receber músicas diferentes. Talvez a trilha pudesse ser feita a partir de sugestões esparsas recebidas de intrometidos. Este escriba acha que ficariam bem na fita, entre outras:

- Grachan Moncur III – “The Twins”
- Cecil Taylor – “Jitney”
- Dom Salvador & Abolição – “Number One”
- Can – “Moonshake”
- Jean-Jacques Perrey – “The Elephant Never Forgets”
- Gil-Scott Heron – “The Revolution Will Not Be Televised”
- Eumir Deodato – “Barcarole”
- The Left Banke – “Let Go of You, Girl”
- The Marvelettes – “The Hunter Gets Captured by the Game”
- Lalo Schifrin – “Mission Blues”
- Chocolate Watchband – “Gossamer Wings”
- The Stooges – “We Will Fall”
- Walter Wanderley – “Volto Já”
- Big Star – “Holocaust”
- Graham Parker & the Rumour – “Watch the Moon Come Down”
- Funkadelic – “Super Stupid”

E, além do que ouvimos, o que vemos também é muito forte: a crítica social e comportamental salta aos olhos numa perfeita utilização do eterno clássico de Cervantes. Já tivemos a oportunidade de falar noutra ocasião do turbilhão pós-moderno que é explorado nesta montagem. Numa segunda leitura, a peça parece, por assim dizer, mais lírica. Como diz outro alemão, Hans-Georg Gadamer, “o espetáculo” – e acrescentamos que por óbvio – “só acontece onde está sendo representado”, e o representar do espetáculo não quer ser entendido, diz ele, como necessidade lúdica, “mas como um entrar da própria poesia na existência”. Dessa forma, faria bem aproveitar mais a magnífica arte abraçada por Kedma Franza, Aline Baba, Caio Marinho e toda Cia. dos Imaginários.

Leia também: Vá ao teatro! Ver Quixote, originalmente publicado no blog Veritas