domingo, 6 de setembro de 2009

A gente não quer só cesta básica

Após as manifestações ocorridas em Heliópolis na última semana, por conta da morte de uma jovem durante perseguição policial na favela, a polícia paulista, auxiliada pela mídia, logo tentou desqualificar o movimento, acusando-o de ser um protesto orquestrado e que grupos criminosos teriam arregimentado manifestantes em troca de cestas básicas. Até mesmo um bilhete de traficantes conclamando a população a participar da empreitada foi exibido na imprensa.

Não havia bilhete nenhum, e a própria polícia parece estar aceitando melhor a idéia de que não houve orquestração nem “compra” da revolta dos moradores de Heliópolis. Mas, a despeito disso, façamos um exercício de imaginação: suponhamos que realmente a manifestação dos moradores tivesse sido orquestrada, com hora marcada e tudo, bem no horário dos programas policiais da TV, como insinuou um policial; imaginemos, também, que boa parte dos revoltosos pudesse mesmo ter ido aos protestos somente por causa da oferta da cesta de alimentos.

No caso da cesta básica, a mídia que tanto explorou o assunto, deveria antes ver tal suspeita com certa naturalidade. No caso sobretudo da televisão, só o que se vê por aí é programa oferecendo benesses de todo tipo para pobres que aceitam se submeter a contar suas histórias, abrir suas casas, participar de gincanas etc. Noutras palavras, eles acham que as pessoas podem mesmo ser compradas com cestas básicas, eletroeletrônicos etc. Quando correram a fazer tal acusação aos moradores de Heliópolis, é bem provável que estivessem apenas expressando aquilo que todos os dias pensam em relação aos pobres. Enfim, tivesse sido verdade a história das cestas básicas, a mídia não deveria ter cinicamente se incomodado com ela, haja vista que está, a todo momento, oferecendo migalhas para que os pobres participem de seus programas de gosto duvidoso.

Imaginemos também que a manifestação, como acusou a polícia outra vez secundada pela mídia, tivesse sido organizada, convocada e com hora marcada, o que significa, em última análise, que não teria ela sido espontânea. Ora, quem foi que disse que as manifestações dos pobres brasileiros precisam ser espontâneas? No caso do Irã, o fato de os protestos naquele país terem sido conclamados pela internet foi vendido como um feito fantástico, revolucionário, indicativo justamente da capacidade de organização de uma sociedade sufocada. E por que isso não valeria para a moçada de Heliópolis, se fosse o caso? Sem ir muito longe, aqui no Brasil os protestos contra Sarney foram organizados por meio de ferramentas da internet, e movimentos como o patético “cansei” se gabavam de ter entre seus “organizadores” empresários, artistas e representantes da sociedade civil. E por acaso ontem, dia 05-09-2009, alguns órgãos de imprensa tiveram orgasmos múltiplos com manifestações anti-Chávez espalhadas pelo mundo, marcadas não pela espontaneidade, mas pela organização virtual planetária. Quer dizer, então, que a organização é bacana no Irã, é jóia quando é contra Sarney, é maravilhosa se for para espinafrar Chávez, é decente no caso do “cansei”, mas não prestaria se tivesse o objetivo de convocar manifestação contra a repressão policial, contra o abandono da população pobre ou contra a macérrima segurança oferecida pelo governo de São Paulo, se fosse o caso?

É claro que, em relação ao contido no parágrafo anterior, há que se antecipar às possíveis ressalvas quanto à diferença entre protestos de cunho essencialmente político de outros que nada mais são do que manifestações advindas da revolta de uma situação específica. Mas não há negar que qualquer revolta de alguma forma imprimirá uma conseqüência política e, em última instância, não se exclui que ela pode até mesmo ter – e na maioria das vezes tem - uma causa igualmente política, ainda que indireta. Exigir espontaneidade de manifestações de pobres nada mais é do que uma estratégia da mídia e de governantes de plantão, que outra coisa não querem além de desqualificar a capacidade de atuação das comunidades carentes, especialmente se for contra o protegido governo de São Paulo. E para isso, vale tudo: além do recurso meramente ideológico, usa-se, sem nenhum constrangimento, a mentira pura e simples.

O movimento, ao que tudo indica, foi espontâneo e não houve distribuição de cestas básicas. Mas, para este blog, nada seria muito diferente se as coisas tivessem ocorrido de maneira contrária.

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