domingo, 30 de outubro de 2011

Imprensa: crise de identidade e necessidade de autoafirmação

Quando num futuro talvez não muito distante historiadores se debruçarem sobre os dias de hoje no Brasil, não faltarão os que não hesitarão em afirmar que nesta era o País vivia sob uma ditadura midiática.

O caso envolvendo o já ex-ministro dos esportes Orlando Silva ainda vai ser motivo de estudo e decerto vai ser marcado como dos mais grosseiros atos de injustiça de nossa história. De quebra, ainda será marca registrada da pusilanimidade do governo brasileiro de plantão.

Roteiro estúpido: requentam-se, via revista de grande circulação, por intermédio de um sujeito enrascado com a Justiça, acusações que já vinham sendo objeto de investigação; acusa-se o então ministro de, in person, receber dinheiro numa garagem qualquer; o sujeito fala que vai apresentar provas no momento oportuno; não se apresentam as provas; a imprensa parte para o linchamento, sinalizando estar num braço de ferro com o governo; Procurador-Geral e Supremo Tribunal Federal, após pedido do próprio Orlando Silva, entram na jogada, usando de suas atribuições normais; a mídia vale-se dos expedientes legais instalados - normais, repetimos -, para intensificar os ataques ao ministro; depois de uma semana de resistência, Orlando Silva joga a toalha e apresenta a demissão.

Se o governo brasileiro teve um comportamento covarde no caso, a oposição, por sua vez, só para variar também agiu de forma patética, deixando bem claro que, conforme repetido ad nauseam, o verdadeiro partido oposicionista hoje é a mídia: sem a pauta da imprensa, a ausência de discurso dos políticos oposicionistas transformá-los-ia em verdadeiras nulidades.

A falta de limites da imprensa
Por que estaria a imprensa agindo de forma tão tresloucada? Seria em razão de uma sanha golpista descontrolada, como acusam alguns? É caso de antipetismo doentio? Não mira tanto Dilma, antes pretendendo atingir o ex-presidente Lula, querendo a todo custo anulá-lo em 2014?

Há um pouco de tudo acima. Mas nessa operação “derruba-ministros em série” a mídia vetusta parece estar, antes de tudo, tomada, a um só tempo, dos demasiadamente humanos dramas conhecidos como crise de identidade e necessidade de autoafirmação.

Houve um tempo em que se construíam consensos, de forma paulatina, através da imprensa. O chamado “efeito pedra no lago” era uma realidade. Burburinhos se espalhavam, por assim dizer, em camadas: começavam nos grandes centros urbanos com os que liam jornais, até, aos poucos, ganhar os grotões. Os roteiros políticos eram previsíveis.

O fenômeno Lula mostrou que a coisa mudou. Em 2002, pode-se dizer que a imprensa fez um pouco de “corpo mole”, pois havia uma ideia no ar de que, mais cedo ou mais tarde, o Partido dos Trabalhadores levaria a presidência da República, de modo que se tivesse que acontecer, que acontecesse logo; ademais, o “previsível” fracasso do governo petista enterraria as pretensões futuras do partido. A situação em 2006, todavia, desconcertou os que acreditavam já estar o roteiro estabelecido. Sofrendo campanha sórdida, desde o chamado mensalão, ainda assim Lula conseguiu resultado expressivo na sua reeleição contra o candidato do império midiático, obtendo especialmente o voto dos mais pobres e da população das regiões mais afastadas do País, que não deram bola para os esforços dos coronéis da velha imprensa.

Em 27 de dezembro de 2006, capa da revista CartaCapital estampava: “É o fim dos grotões, enquanto só nas classes A e B há quem vote de cabresto”. Em belo texto daquele número, assim expressou-se o jornalista Mino Carta:

(...) O vetusto voto de cabresto, destinado pelos donos do poder ao povo dos grotões, onde quer que os houvesse, mostrou valer, este ano, só mesmo nos rincões das classes A e B, onde a mídia ainda chega, sobretudo em São Paulo, o estado mais rico, ou menos pobre, e mais reacionário da Federação.” [Edição nº 425].


Em 2010, novamente a influência da velha mídia não conseguiu avançar além do andar de cima dos grandes centros urbanos, insistindo as águas dos lagos em ficar paradas, apesar das inúmeras pedras que lhes eram atiradas: o seu candidato, já derrotado em 2002, figura de importância histórica no cenário brasileiro, perdeu fragorosamente para um “poste” ungido por Lula.

A pauta da corrupção – somente no governo federal -, com consequente exploração de irregularidades em ministérios – certamente existentes em quaisquer secretarias estaduais e municipais do País -, trouxe para a mídia, neste 2011, a sensação de que pode ainda ter alguma relevância. Conseguir derrubar ministros, mais do que uma prática “esportiva”, virou questão de honra. Os jornalistas Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues, entre outros, jactam-se do fato de o governo vir fazendo sua faxina supostamente na cola da barulheira midiática: é como se dissessem algo do tipo “não elegemos presidente, mas determinamos o rumo desse governinho incompetente e indicamos o único caminho possível da oposição... idem!”.

Perigos?
Bobagens de adolescentes (necessidade de se autoafirmar), dificuldades de homens de meia-idade (crise de identidade), "prática esportiva", questão de honra. Seja lá o que for, a grande verdade é que o resultado do troca-troca de ministros, por pressão e capricho da imprensa, tem sido o de deixar o governo federal na defensiva. Pior é que o caminho escolhido é do discurso fácil e ao mesmo tempo sem foco do combate à corrupção, que virou uma espécie de tema único nos debates sobre o País. Não por acaso, essa onda moralista vem sendo devidamente chamada de neoudenismo.

Eis o risco: a velha UDN foi o braço civil do golpe de 1964. A oposição sem discurso parece estar se deixando gostosamente levar por tal fantasma. Temos visto marchas meio disformes para lá e para cá, e a grita acerca da corrupção parece ser o último “bastião” de uma oposição que age como se tivesse perdido o bonde da história. Essas são justamente as horas propícias a aparecem aventureiros e justiceiros, sempre com o apoio do império dos meios de comunicação.

Não parece razoável classificar de neuróticos os que veem golpismo no agir dos grandes grupos de mídia. Além do prestígio de outrora, tais grupos andaram nos últimos tempos perdendo grana também, em vista da ampliação do rol de veículos que passaram a receber verbas publicitárias federais. Sob ditaduras, os grandões faturaram mais. Portanto...

Crise de identidade e necessidade de autoafirmação geralmente deixam traumas. Cuidemo-nos, pois.

sábado, 15 de outubro de 2011

Alguém marcharia a favor?

As chamadas "marchas contra a corrupção" que vêm ocorrendo no Brasil são, num primeiro momento e numa certa leitura, algo sem muito sentido, e, em segundo lugar e por outra ótica, reveladoras de má intenção ou de interesses inconfessáveis por parte daqueles que as insuflam. Antes de prosseguir, tente imaginar alguém organizando uma "marcha a favor da corrupção". Faz algum sentido?

A desaprovação à corrupção é da mesma linha da praticamente natural repulsa que as pessoas ditas normais têm por assassinatos ou assaltos, por exemplo. E ninguém consegue, creio eu, imaginar cidadãos saindo às ruas em marcha contra assassinatos ou contra assaltos. Por óbvio nem é necessário que uma horda de pessoas se organize para demonstrar sua contrariedade à prática de assassinatos e assaltos; assim como no caso da corrupção, as leis e códigos já tipificam o assassinato e o assalto como crimes, sendo isso, per se, a representação da discórdia da sociedade para com tais barbaridades.

Seria, por outro lado, compreensível que as pessoas saíssem às ruas contra assaltos e assassinatos em situações específicas, como, por exemplo, numa "marcha contra assassinatos de líderes de trabalhadores rurais" ou em protesto "contra o aumento do número de assaltos numa dada localidade no último semestre" e coisas assim. O Movimento dos Sem Mídia, por exemplo, recentemente organizou uma manifestação "contra a corrupção da mídia", ou seja, delimitou e direcionou aquela repulsa que, naturalmente, se sente pela corrupção em geral.

Não parece ser o caso de dizer que houve aumento da corrupção no Brasil para justificar, nos termos dos exemplos acima, as marchas realizadas nos últimos dias: observe-se que, pelo menos até agora, ninguém fala em "marcha contra o 'aumento' da corrupção". Ainda que aparentemente haja quem pense ser a corrupção maior hoje em dia, não se veem corajosos o suficiente para empunhar tal bandeira, expondo-se desse modo ao risco de passarem por ingênuos ao renegar todo um conjunto de discussões que defendem - e explicam - que a corrupção é uma espécie de praga já disseminada, de há muito, em toda nossa cultura.

Na mesma linha, dado o fato de as tais marchas se autoproclamarem apartidárias, espontâneas, gerais e radicais, não podem elas dar-se ao luxo de declaradamente concentrar-se num alvo muito concreto e definido. Elas não podem dizer que são contra a corrupção de um certo partido, por exemplo, ou contra a roubalheira numa esfera específica de governo, ou contra uma determinada figura pública (tida como) corrupta. Elas têm que ser contra a corrupção em geral, pagando, portanto, o preço de ser, como já dissemos, sem sentido.

Mas o que estamos dizendo?! É lógico que os atos políticos não podem ser sem sentido; a violência contra a lógica é apenas aparente, pois por certo que eles têm objetivos claros, ainda que inconfessáveis.

Mesmo que não o digam, com as tais marchas querem sugerir a seus próprios participantes - e os há de boa-fé em número decerto não muito reduzido - e a toda opinião pública que haveria hoje no País mais corrupção do que houve ontem. Seus inflamadores sabem que não é verdade, mas querem passar tal tipo de sensação. Para isso, usam uma espécie de mensagem subliminar, eis que lhes falta coragem - e alguma cara de pau suficiente - para advogar, de forma aberta, o aumento da corrupção no Brasil nos dias de hoje ou mesmo nos últimos anos.

De outro lado, os cérebros por trás de tão "espontâneas" manifestações querem usar o natural descontentamento com a corrupção - crime, como já dissemos - para tentar acertar somente o governo federal, especialmente os seus últimos anos petistas. As suspeitas de corrupção nada desprezíveis dos governos federais anteriores a Lula, muito especialmente as do seu antecessor, não parecem ter muita importância para a galera das marchas; muito menos importantes ainda têm se mostrado os malfeitos nos governos estaduais, notadamente de São Paulo e Minas. Sem dizer palavra, as tais marchas são contra a corrupção do PT e de seus aliados, ponto. (As realizadas em Brasília, reconheça-se, nalguma medida parecem ter fugido um pouco do quadro que descrevemos).

As coisas seriam mais simples - e mais providas de sentido - se os insufladores dessas manifestações dissessem claramente o que querem e de que lado realmente estão - ou, pelo menos, contra que lado estão. Contra a corrupção? Ora, com marcha ou sem marcha, a sociedade, mesmo que não o saiba, é contra a corrupção. Assim como é contra o estelionato, o furto, a tortura etc.