domingo, 24 de novembro de 2013

Desculpe-nos. Daqui a 50 anos!

Comecemos repisando: a Ação Penal 470, vulgo "mensalão", é revestida de grande polêmica entre políticos e juristas, inclusive de muitos não simpáticos ao principal partido e aos maiores nomes nela implicados. Há quem questione o próprio crime (no sentido penal), seus procedimentos, o modelo de julgamento, as teses utilizadas para condenar, a dosimetria adotada etc. Como não poderia deixar de ser, novas críticas seguiram ao mais recente capítulo: a execução das penas.

As críticas à prisão em regime fechado mesmo de condenados não necessariamente a tal pena foram igualmente encampadas por gente das mais diversas colorações. A medida, no entanto, foi muitíssimo festejada pela chamada grande imprensa. Salvo as exceções que confirmam a regra, só se viram alegrias, bravatas e lições de moral na maioria dos editoriais, manchetes, capas e colunas. Não faltou nem mesmo quem imprimisse ao caso um sentimento de esperança, do tipo "é só o começo; virão condenações para todos os malfeitos e de todos os partidos", de modo a disfarçar o revanchismo ou sectarismo.

O rigor científico exige que evitemos, ao máximo, comparar coisas que são essencialmente diferentes. Comparar o julgamento do chamado mensalão com o Golpe de 1964, por exemplo. A simples ideia de classificar o "ponto fora da curva" - como disse o ministro Barroso -, que caracteriza o julgamento, como sinal de golpe já é uma atitude ousada, que talvez só o velho tempo poderá bem dimensionar. Há, porém, exemplos que permitem passear pela hipótese.

Diferentemente das décadas de 1960 e 1970, as elites latino-americanas não vêm usando os militares para tentar compensar a impopularidade de suas ideias e seus desejos. Atualmente, a preferência vem recaindo pelas estruturas do Judiciário. O caso mais marcante foi o golpe em Honduras pela iniciativa da Suprema Corte do país, seguido da deposição em tempo exíguo do presidente Lugo, no Paraguai, que teve seu impeachment referendado, em tempo igualmente rápido, por sua Corte maior. Ressalte-se que questões de interesse popular na Argentina e na Venezuela, também recentemente, só não sofreram reveses judiciais porque em ambos os países houve preocupação com a coloração das supremas cortes -  tal espaço foi compreendido, por Chávez e pelos Kirchners, como elemento fundamental da arena política.

O que mais permite a comparação com 1964 é mesmo o já mencionado comportamento da mídia. O clima de torcida e agitação após a "vitória" saboreada pelo encarceramento dos "mensaleiros" assemelha-se, guardadas as proporções, ao tom expresso nas manchetes após o Golpe Militar de fim de março e início de abril de 1964. Alguém estranharia, hoje, se lesse em alguns de nossos jornalões, embaixo de uma foto de Dirceu ou Genoino preso, algo do tipo "vive a Nação dias gloriosos"? Para entender melhor, veja a compilação do sítio Carta Maior.

Passados muito poucos anos, alguns dos órgãos de imprensa que celebravam 1964 já sentiam na pele o que aquele movimento significava. Em seguida, muitos passaram a surfar noutras ondas, vendo que o processo de abertura era irreversível. Outros estiveram até o fim com os militares, coerentes com sua posição. Todavia, estes últimos, passados quase 50 anos do golpe e perto de 30 da despedida do regime, após sofrer ataques verbais nas ruas, entenderam por bem fazer um "mea culpa", demonstrando relativo arrependimento pelo embarque naquela empreitada.

Muita coisa ainda deve ser escrita e reescrita sobre o tal mensalão. A história é intrincada: envolve vingança, há de fato crimes eleitorais, existe o componente dos vícios do sistema político, jogos de interesse etc. Não obstante tudo isso, o que mais vai saltar aos olhos será o sacrifício de figuras e funcionários públicos com o fim de se fazer um grande espetáculo de que o País, em algum sentido movido por motivos nobres, estava sedento por assistir. Noutras palavras, o "ponto fora da curva" nada mais é do que um refinado eufemismo para julgamento de exceção. E tem gente - inclusive doente - indo presa, após medida arbitrária, com o fim de saciar o desejo de sangue dos bombardeados pelo discurso midiático e a fome de vingança dos derrotados nas urnas.

Um julgamento de exceção, assim como regimes de exceção, tem tudo para ser execrado um dia. Impossível prever em quanto tempo. Quando esse dia chegar, alguns dirão que foi para evitar males maiores ou que houve uma tentativa de se moralizar a política a qualquer custo, ainda que por meio de uma injustiça. Mesmo que forçados, alguns talvez peçam desculpas. Tomara não seja necessário esperar 50 anos!


sábado, 2 de novembro de 2013

A primeira semana sem Lou Reed

 Sempre que vejo, neste início do XXI, alguma figura fundamental do mundo da arte e da cultura indo embora, costumo dizer que é o século XX morrendo. E, nos últimos tempos, tal ilustração foi tão verdadeira quanto no caso do falecimento do roqueiro Lou Reed, morto no dia 27 de outubro de 2013, aos 71 anos, brilhante primeiramente como líder do lendário The Velvet Underground e em seguida em notável carreira solo.

Falando do legado do genial artista, um amigo lembrou-me de uma triste coincidência: minha mais recente resenha para o sítio RateYourMusic foi sobre o terceiro disco do Velvet Underground, o homônimo de 1969, justamente o trabalho no qual a banda já não contava com John Cale, funcionando como grupo genuinamente de Reed, sem, é claro, desmerecer os demais integrantes.

Em homenagem ao já saudoso roqueiro, reproduzimos abaixo a pequena resenha (original aqui). Ao final, ouça a faixa "Jesus", que encerra o lado A do LP.


The Velvet Underground (1969)

Este homônimo de 1969 deve ser avaliado como uma saída para os roqueiros que não foram fisgados ao primeiro contato com o Velvet Underground.
Há aqueles que, com razão, consideram exagerado o endeusamento do primeiro disco, produzido por Andy Warhol e com participação de Nico.
Outros ficam assustados com as distorções, ruídos e experimentalismos de White Light/White Heat, o segundo álbum do grupo.
Neste terceiro, a banda, já sem John Cale, soa mais, digamos, normal, enveredando pelo rock e folk sem firulas, com direito a refrões mais ou menos pegajosos e riffs que não fazem feio para quem quer apenas ser pop.
Destaque para os vocais de Lou Reed, em seu melhor  momento: superapaixonados e com arrepiante atitude rock - não me perguntem o que é isso: sinto mas não sei explicar.
Para não perder o costume, "The Murder Mystery", em seus quase nove minutos, paga tributo aos discos anteriores, não deixando totalmente órfãos os admiradores das esquisitices dos dois primeiros.